segunda-feira, 6 de novembro de 2017

A "CIÊNCIA" DO FUTEBOL


O futebol, como qualquer outra modalidade desportiva é, para mim, uma das formas da motricidade humana - como é lógico! Embora a pretensa cientificidade de muitos comentadores do futebol seja proporcional à sua desumanidade, quero eu dizer: quanto mais falam de futebol menos humano se revela o seu discurso. É verdade que, desde os inícios do pensamento moderno, mormente com Galileu e Descartes, o “homem” e a “ciência” sempre se constituíram como duas realidades estranhas uma à outra: a inteligência, a personalidade, os sentimentos humanos não podiam pesar-se, medir-se, quantificar-se – não eram, com toda a certeza, científicos. Demais, a ciência moderna nasce e desenvolve-se mecanicista. O universo é uma imensa máquina, composta por um enorme conjunto de máquinas cujas leis importa conhecê-las. E, por isso, Deus é o divino engenheiro, omnipotente criador de um universo que pode ser estudado, matematicamente. Não é de estranhar assim que os filósofos e os cientistas de mais ampla inteligência teorizadora tenham comparado o Mundo a um relógio.
O homem-máquina de La Mettrie (1709-1751), filósofo materialista e médico que pretende ensinar que, no mundo todo, só matéria se encontra e é dessa matéria que o ser humano (e tudo) nasce e de que o ser humano é feito – La Mettrie, minucioso e irónico, não abandona o mecanicismo, apontando as leis mecânicas que regem, segundo ele, as funções do corpo de um ser vivo. Um ponto a realçar: a partir desta altura, o sábio deixa de ser o clérigo aristotélico-tomista e passa a ser um leigo, uma pessoa que sabe que não tem a verdade, mas que imparavelmente a procura, pela razão e pela reflexão e pelo método experimental. No meu modesto entender, a história das ciências, que vai de Copérnico (1473-1543) a Newton (1643-1727) é de um progresso admirável e prepara o Iluminismo e informa, claramente, a Revolução Francesa…
Não surpreende portanto que Ciência, Razão e Progresso caminhassem de mãos dadas e que, quando pela primeira vez, no século XVIII, a expressão Educação Física (que integrava a Ginástica, os Jogos e os Desportos) tenha surgido, no vocabulário científico, os exercícios ginásticos se destinassem ao homem-máquina, a um corpo-instrumento que a Razão esclarecia. Vale a pena reler a Proposta de Lei, de 25 de Fevereiro de 1939, apresentada à Assembleia Nacional para a criação do INEF (Instituto Nacional de Educação Física) português, onde assim se define a Educação Física: “é uma acção intencional que o homem, devidamente dirigido, exerce sobre si mesmo, pela prática racional, sistemática dos exercícios físicos - ginástica, jogos, desportos – metódica e conscientemente executados, como complemento essencial dos restantes meios educativos e higiénicos e tendo como objectivos imediatos a saúde, beleza, força, resistência, disciplina, prontidão, espírito de solidariedade, optimismo, confiança em si, domínio de si próprio, coragem, prudência, caráter, personalidade, tornando o corpo o digno instrumento de uma vontade esclarecida”.
Como se vê, uma antropagogia, ou teoria da formação do ser humano, assente no corpo-instrumento e apontando para uma antropologia declaradamente dualista. Enfim, a dicotomia corpo-mente, sentimentos-consciência, natureza-cultura emergia da educação física até meados do século XX. Muita gente que pontifica, no desporto nacional e internacional, ainda não ultrapassou, nem o mecanicismo cartesiano, nem o solo epistemológico do positivismo. Ousaria mesmo escrever que, no futebol, há muita gente que pensa que sabe explicar o futebol, sem nunca o ter compreendido. Compreendido? Sim, porque ao nível do humano nada escapa à ordem dos valores e das significações, mesmo como exigência do rigor metodológico.
O que eu aconselharia aos “agentes do futebol”?... Digo isto, após uma severa autocrítica (porque, à boa maneira socrática: só sei que nada sei): um corte epistemológico, em relação à pré-ciência de um senso comum que analisa o futebol, sem descontinuidade, nos problemas e na linguagem. O curso de um conhecimento verdadeiramente científico não é linear, o seu grande objetivo é respeitar o Passado, mas construir o Futuro, o que implica pôr de lado e rejeitar muito do que a tradição nos oferece. “A exigência de objetividade, no sentido de objetivação, leva-nos necessariamente a descartar o caráter meramente acumulativo e continuista do saber, bem como a fazer da ideia de progresso descontínuo a espinha dorsal de toda a cientificidade. Se é assim, também esse progresso precisa ser pensado em termos de ruptura” (Hilton Japiassu, Nascimento e Morte das Ciências Humanas, Francisco Alves editora, p. 145). Ruptura, em primeiro lugar com uma organização apressada e desleixada dos clubes. Há dirigentes desportivos de exemplar amor pelos seus clubes, mas sem especialização bastante para, atualmente, organizarem um clube com alta competição, ou alto rendimento. Já é clássica a definição de Peter F. Drucker: “Uma organização é um grupo humano composto por especialistas que trabalham numa tarefa comum (…). Uma organização é sempre especializada. Define-se pelas suas tarefas (…). Uma organização só é eficaz, se se concentrar numa tarefa. Uma orquestra sinfónica não tenta curar doentes, toca música. Um hospital cuida dos doentes, mas não procura tocar Beethoven (…). A sociedade, a comunidade e a família são; as organizações fazem (Sociedade Pós-Capitalista, Actual Editora, Lisboa, 2003, pp. 61/62). E, para as organizações fazerem, é imprescindível o contributo de direções competentes.
Donde, logicamente se conclui que organizar é tornar produtivos os conhecimentos. Mas, no âmbito das ciências humanas, um especialista é tanto mais eficaz quanto mais tiver em conta a complexidade humana, presente em todos os elementos que a constituem. Num treino de dominância física, o jogador de futebol (o atleta) é um ser de sentimentos. E se ele se encontra incompatibilizado com o treinador?... E, se nesse dia o pai está gravemente doente?... E se um dos filhos ficou em casa, com febre alta?... É evidente que, assim, o treino se transforma num espaço de insanável aborrecimento e, nalguns casos, de aversão.
Não passo sem sublinhar as palavras de António Damásio à revista do Expresso, de 2017/10/28: “Os humanos não têm apenas a inteligência, têm por exemplo a linguagem. E temos uma socialidade muito mais complexa do que a de outras criaturas. E os impulsos criativos. E, analisando estas respostas, vemos a ideia. A ideia forte é a de que tudo o que há de bom e de bem, tudo o que ajudou instrumentalmente a criar culturas nunca teria acontecido se não tivéssemos sentimentos. Sentimentos, ora de dor e sofrimento, ora de plenitude e prazer”. E diz mais adiante, numa entrevista superiormente conduzida por uma jornalista com dotes notórios para o jornalismo (o que nem sempre sucede) e pessoa culta, que se topa no seu infatigável interrogar: “O sentimento é a representação do imperativo homeostático”. O que é peculiar no jogador, por ser homem, é secundário e acaba por reduzir-se às necessidades primárias da tática, nos “estudos” de alguns pseudo-especialistas. Não, eu não digo que a tática não é importante, o que eu digo é que não é essencial. Só podemos esperar respostas humanas dos jogadores, se os respeitarmos (e estudarmos) como homens. Só assim podemos fazer ciência… nas ciências humanas! Mas eu vou continuar com este tema.
Manuel Sérgio é professor catedrático da Faculdade de Motricidade Humana e Provedor para a Ética no Desporto

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