terça-feira, 26 de dezembro de 2017

O GUARDA-REDES QUE BARALHOU ESTALINE


"Era fácil imaginá-lo encostado a um dos postes com o seu ar de desafio, boina na cabeça, puxando fumaças de um cigarro. Aliás, era fácil imaginá-lo de cigarro na boca. Ou melhor: era fácil vê-lo de cigarro na boca. Fumava três maços por dia.
Falo de Zamora, El Divino.
O grande soberano dos ângulos.
Era guarda-redes como podia ter sido médico, como seu pai, a quem contrariou teimosamente a vontade. Mas era, sobretudo um arquitecto. Ou um matemático. Dominava os arcos, os fustes e os capitéis. Um passo apenas, ou só meio. De repente a baliza passava a ser do seu tamanho sem um espaço que fosse por onde a bola entrar.
No Mundial de 1934, contra a Itália, foi tão perfeito que os seus movimentos ganharam uma designação como as chicuelinas das touradas: zamoranas.
A zamorana não era uma brincadeira qualquer. Era um ato de coragem e, ao mesmo tempo, científico. O braço e o antebraço formavam um ângulo recto. Como se ele tivesse estudado as interações dos ossos e dos tendões na Faculdade de Medicina da qual fugiu a sete pés. Houve uma altura em que todos os guarda-redes queriam aplicar uma zamorana. Era assim uma espécie de passagem à fase adulta das balizas. Um curso, se quiserem. Quem fizesse uma zamorana perfeita, evitando o golo inevitável, tornava-se um doutor da grande-área.
Certa vez, a selecção de Espanha veio jogar a Lisboa, no antigo Stadium da Alameda das Linhas de Torres. Mais de 20 mil pessoas enlataram-se no peão e nas bancadas, uns às cavalitas dos outros, automóveis e side-cars entupiram o Campo Grande à uma hora da tarde do dia 17 de dezembro de 1922.
Os jornais da época descreviam: «Um verdadeiro acontecimento desportivo e mundano».
Nesse tempo, Zamora jogava no Barcelona depois de ter passado pelo Espanhol. Ah! O grande Zamora! Toda a gente esticava o pescoço e abria os olhos de espanto perante El Divino Zamora.
«O dominador emérito da bola!!!».
Assim mesmo, cheio de pontos de exclamação.
Zamora não se esteve absolutamente nas tintas para a medicina. Chegou a completar umas cadeiras na Faculdade Condal, talvez tenha vindo daí o seu à vontade no domínio da anatomia. Não era apenas aquela coisa da zamorana, braço e antebraço, eram também os punhos e os cotovelos. Ninguém como Zamora para causar medo-pânico aos avançados contrários. Ele partia cabeças de cada vez que saltava ao encontro da bola, socando-a com a raiva de um endemoninhado. Socava tudo: bolas, occipitais, parietais, frontais, narizes e dentes. Às vezes dava ares de Genghis Khan: «Eu sou um castigo de Deus!».
Voltou ao Espanhol. E o clube viajava um pouco por toda a parte levando Zamora e cobrando sete mil pesetas por jogo.
Cerca de dez anos antes desse Portugal-Espanha do Campo Grande, tinha estado em Lisboa outro fenómeno das balizas: Chayriguès. Monsieur Chayriguès, do Red Star de Paris. Um revolucionário! A vida dos guarda-redes mudou por causa de Chayruguès: deixou a expectativa. Passou à acção. O francês encantava multidões com as suas saídas a mãos ambas, com a forma como se atirava aos pés dos adversários e, sobretudo, com os seus extraordinários plongeons, mergulhos tão espectaculares como arriscados e que lhe valeram uma carreira marcada pelas lesões. Nada parecia ser capaz de vencer a sua elasticidade, a sua valentia, a sua técnica com as mãos.
A sua aura era de tal forma grande que se tornou conhecido por toda a Europa e chegou a receber um convite milionário para jogar pelo Tottenham Hotspurs pela verba de 12 mil francos/mês. Recusou. 
Ricardo Zamora não recusou o convite do Real Madrid. Um absurdo! 150 mil pesetas em 1930. Parece que o guarda-redes ficou com 40 mil desses 150. O dinheiro valeu-lhe chatices, um processo fiscal e o diabo a sete. Ainda por cima, Zamora não tinha o cadastro completamente lavado. Já fora acusado de contrabando de charutos cubanos. Era tão universalmente famoso que, quando confrontado com certas declarações pouco abonatórias à União Soviética feitas pelo Presidente da República de Espanha, o seu homónimo Niceto Zamora, Estaline encolheu os ombros. «Ah! Pois. Aquele guarda-redes...».
A camisola de lã, a boina arredondada, as zamoranas, encantaram o mundo do futebol. E a boneca de pano que Zamora levava sempre consigo debaixo do braço e colocava no fundo da sua baliza, acrescentavam-lhe o toque de ternura que devolve os deuses à companhia dos homens. «Zamora na Terra; São Pedro no Céu!», gostavam de dizer os espanhóis.
Tinham ambos, dependuradas à cintura, as chaves do Paraíso."

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