domingo, 7 de janeiro de 2018

O DR. ARMANDO ROCHA: - UM AMIGO QUE NÃO ESQUEÇO


Faleceu, no passado dia 1 do mês corrente, o Dr. Armando Elísio Morais Rocha (o Dr. Armando Rocha), diretor-geral dos Desportos e inspetor nacional do Desporto Universitário, de Maio de 1963 a Maio de 1973, durante dez anos portanto.
Quem exumar de jornais e revistas o seu trabalho, como diretor-geral, não reconhecerá, com toda a certeza, a obra original e irrepetível, como organizador e coordenador do desporto português, designadamente o seu impulso varonil que pôs de pé o I Plano de Fomento do Desporto Universitário e o I Plano de Fomento Gimnodesportivo. A seu convite, fui o responsável pelo Centro de Documentação e Informação do Fundo de Fomento do Desporto, que integrava a biblioteca do INEF (Instituto Nacional de Educação Física), desde 7 de Outubro de 1968 até à Revolução dos Cravos. Também a seu convite fui professor de História da Escola de Instrutores de Educação Física de Lisboa. Recebia-me, semanalmente, no seu gabinete da Avenida Infante Santo, 76, 4º., e pedia-me o meu juízo crítico sobre a política informativa dos diversos jornais, tanto os desportivos, como os generalistas. Informava-se dos livros que eu, a conselho dos professores do INEF e da Escola de Instrutores, adquiria para a biblioteca. Falávamos de Desporto, uma palavra que se toca e, como que por milagre, se desentranha numa floresta de sentidos, ora especificamente desportivos, ora sociais, ora políticos. Quando, em 1972, o Dr. Raúl Rego me deu a honra de colaborar no jornal República, dizendo-me, com simpatia, que admirava o meu empenho interventor, nas questões do Desporto, logo o Dr. Armando Rocha, a quem comuniquei a minha vontade de escrever no jornal da Oposição ao Estado Novo, me aconselhou, com amizade: “Mas não ultrapasse uma saudável irreverência académica”. E acentuou: “É que os seus artigos começam no Desporto e a tudo vão dar”.
No seu livro Memória (Lisboa, 2002) Armando Rocha faz uma síntese da sua vida desportiva. Há nestas linhas a reiteração de uma espécie de programa em que o Desporto é encarado na perspetiva de uma convergência entre a Política e a História. Sempre a realidade se ofereceu promitente aos que têm o saber e a vontade bastantes, para poder transformá-la. E, em Portugal, ninguém conhecia melhor o texto e o contexto, em que o desporto português se movimentava, do que o Dr. Armando Rocha. Depois, tratava-se de “uma personalidade fascinante, que merece a estima e a admiração dos que o conhecem, até porque o seu relacionamento humano é marcado por uma frontalidade e acutilância invulgares, traduzidas na forma como coloca e analisa os problemas da vida e avalia o comportamento das pessoas e das instituições. Ao mesmo tempo, e sejam quais forem as perspectivas com que nos debrucemos sobre os actos da sua vida, emerge sempre com nitidez o amor ao trabalho, o respeito pela hierarquia, a lealdade ao Estado e uma preocupação constante, pelo rigor, pela verdade e pela justiça”. Palavras sábias, no Prefácio deste livro, do Prof. José Veiga Simão, contemporâneo de Armando Rocha, na Faculdade de Ciências da Universidade de Coimbra e ainda seu colega na equipa de basquetebol da Associação Académica de Coimbra. Aliás, da vetusta cidade universitária, do velho burgo dos estudantes, alcandorado na sua formosa colina, do poético Mondego, do Penedo da Saudade, enfim, da cidade encantadora de Coimbra, “onde vivi (lembrava o Armando Rocha) alguns dos mais descuidados, dos mais desanuviados e felizes anos da minha vida”, falava sempre com saudade. Sem esquecer o jogador e dirigente de basquetebol (foi campeão nacional, em duas épocas consecutivas) e ainda o praticante de remo, sempre da Associação Académica…
Deixo agora a palavra ao Dr. Armando Rocha, no livro das suas memórias desportivas: “Em 1939, a Associação Académica de Coimbra venceu, nas Salésias, a final da Taça de Portugal, contra o Sport Lisboa e Benfica, com uma equipa capitaneada pelo dr. José Maria Antunes Jr., que haveria de ser o meu médico, em Lisboa, até ao seu falecimento. Quis o destino que, 30 anos depois, aqueles clubes se voltassem a defrontar, em 22/6/1969, agora no Estádio Nacional, sendo eu o director-geral dos Desportos. No final do ano lectivo de 1969, a Academia de Coimbra vivia uma crise de enormes proporções, em confronto com o ministro da Educação, dr. José Hermano Saraiva. Teve ela expressão na cerimónia de inauguração do novo edifício da Faculdade de Ciências da Universidade de Coimbra (17 de Abril), para a qual o Reitor, Prof. Doutor Andrade Gouveia, que fora meu professor de Química, me convidara” (p. 137). Desde 1962, frequentava eu, como trabalhador-estudante, o segundo ano da licenciatura em Filosofia da Faculdade de Letras de Lisboa - desde 1962, a agitação escolar, nas Universidades de Lisboa e Coimbra, era demasiado evidente, para confundir-se com factos puramente acidentais, sem íntima ligação à luta desassombrada de algumas “consciências vigilantes”, contra todas as atitudes contrárias à autonomia da Universidade e em favor da democratização da vida escolar, da democratização da sociedade portuguesa e pelo fim da guerra colonial onde já naufragava a nossa economia. Em 1969, porque o Poder sempre hostilizou quem o criticou, qualificando de “comunistas” as Associações de Estudantes(AA.EE.) e os próprios organismos universitários da Ação Católica, proclamou-se o Luto Académico, na Universidade de Coimbra, a que aderiu, em completo espírito de solidariedade com as decisões das AA.EE., a equipa de futebol da Associação Académica de Coimbra.
Vejo caminhar na tela da memória o texto de Jacques Derrida, titulado Le loup oublié de Machiavel. O autor de O Príncipe deixa-nos este pensamento, para meditação: “Lutar e combater com as leis é próprio dos homens; lutar e combater com a força é próprio das bestas”. É preciso, realça Maquiavel, que o Príncipe saiba combater, com as duas armas: a lei e a força. E que, portanto, se comporte como homem e como besta. A inexistência de diálogo, com o correlativo divórcio, entre o ministro da Educação Nacional daqueles anos sombrios e os estudantes universitários apresentou-nos um Poder que agiu como besta, fiel ao mandamento célebre de Salazar: “a Autoridade não se discute”. O Dr. Armando Rocha, com seguras amizades na Associação Académica de Coimbra, ainda tentou uma reunião com o Dr. José Hermano Saraiva, ministro da Educação, visando explicar ao Governo o que verdadeiramente se passava, na Lusa Atenas. Saiu da “quase reunião” cabisbaixo e abatido, mas com a incumbência de ser ele a presidir ao jogo, em nome do Presidente da República. Assisti ao Benfica 2 – Académica 1, na companhia dos meus filhos José Manuel e Pedro Miguel, e pude assistir também à maior manifestação antifascista que em Portugal se realizou, antes da Revolução dos Cravos. O grito de luz que saltava dos olhares da esmagadora maioria dos espectadores, cúmplices do mesmo repúdio por um sistema político que aumentava a repressão e simultaneamente se debilitava e ganhava, dia após dia, a rigidez do passamento – é ainda, para mim, inesquecível. Como inesquecível é a alegria (suave na voz e na maciez dos abraços – era dia de Luto Académico) do Dr. Armando Rocha, entre o Francisco Andrade, o treinador, e os jogadores da sua equipa de sempre: a Associação Académica de Coimbra. Sempre igual a si próprio, na tolerância, na sensatez, na dignidade, o meu querido Amigo e diretor-geral dos Desportos…
Acabo como principiei: faleceu, no passado dia 1 do mês corrente, o Dr. Armando Elísio Morais Rocha. Nasceu, em Águeda, no dia 26 de Setembro de 1927. Faleceu a pessoa que, naqueles anos já distantes, mais depressa entendeu o que eu quero dizer, quando reafirmo, com um frémito na voz: o Desporto, para mim, é um pretexto para falar do que mais interessa.
Manuel Sérgio, in a Bola

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