terça-feira, 6 de março de 2018

HÁ VERDADEIRO E FALSO DESPORTO…


“Há verdadeiro e falso desporto, como há verdadeira e falsa notícia, coimo há verdadeira e falsa moeda. Distinguir um do outro é tarefa imperiosa e urgente. Mas só se suprime o que se substitui. O desporto não está, aqui e agora, em causa. Nem sequer o lucro que ele pode proporcionar. O que se denuncia é a conceção economicista do desporto, tendo até em conta a falência do coletivismo dito marxista e do neoliberalismo selvagem (que é rei e senhor do mundo em que vivemos). Não se é desportista quando se admite, sem um grito de alarme, que um desporto faccioso e doentio, argentário e ao serviço de escondidos interesses, prossiga com honras oficiais e com aparato científico e sem uma perceção pública dos agentes económicos em geral e dos investidores e empresários em particular.
Num tempo em que tanto se substitui a memória pela esperança, há que procurar sentimentos e ideias, dados e valores, formas e símbolos, que ainda não tenham sido eticamente experienciados, designadamente no desporto de alta competição. Criticamente, mas com vontade de ser mais”. Este é um trecho, extraído do livro da minha autoria Algumas Teses sobre o Desporto (Compendium, Lisboa, 1994, p. 42). Neste mesmo livrinho, escrevi eu também, dirigindo-me aos praticantes: “O desporto deve proteger e desenvolver a resistência, a força, a velocidade, a flexibilidade, etc., ou seja, todas as capacidades físico-motoras. Mas não te limites à corporeidade, enquanto contexto biológico. Também estas inserido num clube, ou numa escola e fazes parte de uma equipa. Depois, o desporto continua terra virgem de uma nova teoria ética, de um novo sentido da responsabilidade. Quando o sucesso e a vitória se exprimem tão-só em números, o desporto transforma-se de certo num universo concentracionário, onde se salvam as estruturas materiais, o lucro, a arrogância dos adeptos facciosos e, muitas vezes, se perdem os homens” (pp. 35/36).
“Eu sou meu corpo” é uma frase de Maurice Merleau-Ponty que o nosso Vergílio Ferreira repetiu, no seu livro Invocação ao meu Corpo. Aliás, o autor da Phénoménologie de la Perception, perante a Sociedade Francesa de Filosofia, referiu que, para ele, a perceção é a forma primeira e fundamental do conhecimento, pois que “percevoir c’est se rendre présent quelque chose à l’aide du corps”. É pela perceção e portanto pelo corpo que eu posso conhecer, que eu posso reconhecer-me, como indivíduo e como pessoa. O primado da perceção sobre a razão e o entendimento aponta-nos um novo paradigma onde não cabem, na complexidade humana, nem um fisiologismo, nem um intelectualismo, redutores. Qualquer atividade físico-motora deverá estudar-se não só de acordo com os preceitos da mecânica ou da física, mas tendo em conta tudo o que o ser humano é e tem. Por isso, se bem penso, o desporto tem um valor formativo e um valor instrutivo. O meu amigo e colega de curso, na Faculdade de Letras de Lisboa, Manuel Ferreira Patrício explica, com mais propriedade, o que eu pretendo dizer: “Em Píndaro (que Goethe e Nietzsche vieram a seguir) encontramos a antecipada síntese chega a ser aquilo que és. Interpreto assim: chega a ser em acto aquele que és em potência. Ou assim: chega a ser em realidade aquele que és em possibilidade. Aquele que és significa a forma que és (revista Philosophica, 6-1995, Departamento de Filosofia da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa). Kant escreveu que não é possível ensinar filosofia, mas ensinar a filosofar. Ou seja, para este filósofo, a filosofia tem valor instrutivo e valor formativo. No paradigma, onde o desporto se fundamenta (para mim, a motricidade humana, ou o movimento intencional da transcendência) há também necessidade de instrução e de formação: instruir é transmitir conhecimentos, educar é formar. Na educação, portanto, há mais do que simples transmissão de conhecimentos. Recordo Píndaro, uma vez mais: “volta a ser aquilo que és”.
“Rafael Leão tornou-se o mais jovem estreante de sempre a marcar num FC Porto-Sporting, ultrapassando os portistas Ângelo Silva (1938) e Diego (2004). E passa a ser o 3º mais novo, estreante ou não, a marcar em clássicos, ficando apenas com os benfiquistas Espírito Santo (17 anos e 3 meses, em 1937) e Fernando Chalana (17 anos e 11 meses, em 1977) à sua frente. Ou seja, nenhum sportinguista marcara tão novo, num clássico, para a Liga. E só Oliveira Martins (em 1929, com 17 anos e 11 meses) marcara mais novo, mas no Campeonato de Portugal” (A Bola, 2018/3/3). Rafael Leão, com 18 anos de idade (nasceu em 10 de Junho de 1999) jogou num clássico do futebol português e… “entrou, correu, rematou e marcou um golaço”. Mas ensinaram-no a pensar, correta e criticamente, um jogo de futebol, em Portugal? É que, no nosso País, são poucos os “amantes do futebol”. A esmagadora maioria das pessoas quer (de qualquer maneira) a vitória do seu clube. Poucos são os que têm uma visão estética de um jogo de futebol. O futebol, em Portugal, não está à altura do futebol, como espetáculo, numa sociedade civilizada. Em Portugal, ainda não somos suficientemente “amantes do futebol”. Somos demasiado clubistas e tão clubistas que poucos de nós sabem ver e pensar um jogo de futebol. Muitos dos comentários que se escutam, acerca de um jogo de futebol, chegam a atingir o grau ómega da estupidez. É verdade que somos campeões europeus de futebol e de futsal e campeões do mundo de futebol de praia. Mas temos por nós uma Federação Portuguesa de Futebol, com um pensar e sentir e agir que não se confunde com a ideologia reinante nos estádios de futebol e na mundividência de muitas pessoas que os frequentam, a começar pelos camarotes. Muita gente, de facto. E com inumerável descendência.
Rafael Leão parece potencialmente um ótimo jogador de futebol. Mas ainda não sabe que há verdadeiro e falso desporto. E, no falso desporto, o jogador de futebol é meio, não é fim. O desporto pode transformar-se num espaço privilegiado de emergência do espírito crítico. Mas não a “máquinas-de-fazer-golos”, que uma onda de basbaques e oportunistas e representantes de um mundo, que junta o mais descarado individualismo e o mais despudorado mercado livre, vão começar a rodear. No verdadeiro desporto (conforme Thomas Arnold e Coubertin o anunciaram) não há só Atividade Física, há acima de tudo valores que, em plena competição, podem transformar-se numa lei universal da ação humana. Mas os clubes, com espetáculo desportivo, são verdadeiras empresas capitalistas, com nítidas funções ideológicas, ao legitimarem a ordem injusta estabelecida e ao fazerem da eficácia e do rendimento os critérios fundamentais de análise da prática desportiva. Também a saúde, como paradigma da Educação Física, é outra maneira de reduzir a motricidade humana a um meio preventivo, ou curativo, das enfermidades.
Considerar a Educação Física, unicamente como se de um medicamento se tratasse, rouba postura crítica e consciência social aos que a praticam e a lideram. Uma aproximação antropológica da motricidade humana (e do desporto, portanto) descobre nela um lugar privilegiado para o desportista compreender o tempo em que vive, a dimensão pública da vida e o sentido de pertença a uma comunidade, ou seja, a vocação política do ser humano. O desporto é mais do que desporto. Faz bem à saúde? Pode fazer, de facto. Mas o desporto não nos deve ensinar só a “durar”, mas principalmente a “viver” e, aqui, o desportista deveria ser chamado a um diálogo com outras disciplinas e áreas do saber. O falso desporto é o que julga que é desporto tão-só. O verdadeiro desporto é o que, pelo movimento intencional, nos ajuda a pensar filosoficamente os grandes problemas da existência. Oxalá que o Rafael Leão ainda o venha a saber.
Manuel Sérgio, in a Bola

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