segunda-feira, 10 de dezembro de 2018

MONGE DA SILVA E O TREINO DESPORTIVO


"“Já saio pouco de casa!” tal é o seu estribilho exclamativo e sorridente, quando o convidam “para ir aqui ou acolá”. Tem 71 anos de idade, é professor aposentado da Escola Secundária de Camões e, há trinta e quarenta anos, corporizava um “dogma” aceite por quem fazia ou ensinava desporto: “o Monge da Silva é o português que mais sabe de treino desportivo”.
Trabalhou, com êxito. no S.L. Benfica (onde foi campeão nacional, conquistou 2 Taças de Portugal e a Supertaça) no Portimonense e noutras equipas primodivisionárias. Leccionou, no INEF (Instituto Nacional de Educação Física) as disciplinas de “Fisiologia I e II” e “Teoria de Jogos e Desportos”; e, no ISEF (Instituto Superior de Educação Física) as disciplinas de “Teoria do Treino” e de “Metodologia do Treino”. E, com uma complacência, que é virtude muito sua, apiedava-se dos que o procuravam, vindos de Lisboa e doutras cidades do País, ávidos do seu saber e da sua tranquila generosidade. É de salientar ainda que trabalhou, sempre como metodólogo do treino, com um saber surpreendente, “in illo tempore”, em várias selecções nacionais, chegando a campeão mundial de seniores e europeu de juniores, na modalidade de hóquei em patins. Um currículo a merecer franco aplauso! Sem favor! Beneficia de uma inesgotável memória. Uma tarde, depois de escutar-me uma crítica vivaz, entremeada de uma anedota, ao positivismo (ou ao fisiologismo) de alguns treinos que eu observara no Estádio do Restelo, recitou-me, de cór, a definição de Educação Física, que aprendera na aula de “Ginástica Teórica” do Doutor Celestino Marques-Pereira: “A Educação Física é um aspecto da educação integral que, através de uma processologia específica, baseada no movimento humano, cientificamente organizado, visa contribuir para o aperfeiçoamento e desenvolvimento, por igual expresso, das capacidades globais hereditárias do ser humano, no sentido de uma mais ampla, profunda e completa integração do indivíduo e da sociedade”. E terminou, emocionado e grato e com o ar grave de quem está a fazer uma afirmação convicta: “Era um professor com nível verdadeiramente universitário. Admirava-o bastante!. Parecia um neurofisiologista afamado”. Não sendo médico, o Doutor Celestino era, com toda a certeza, um fisiologista e um frequentador assíduo dos melhores livros desta área do conhecimento.
Hoje, no treino, já impera um paradigma sistémico. Edgar Morin, na esteira de Von Bertalanffy, define o sistema como “um conjunto de unidades em inter-relações mútuas”. E aprofunda esta definição, quando concebe o sistema como “unidade global organizada de inter-relações entre elementos, ações ou indivíduos”. A grande novidade da noção de sistema reside na ideia de totalidade que faz do sistema um todo organizado, cuja explicação deverá procurar-se na sua natureza sistémica ou organizacional. Assim, “o sistema que resulta da disposição das partes é mais do que a adição ou a simples justaposição de um conjunto de partes. É o produto das interacções entre as partes, as quais, posicionando as partes no seio de um todo, transformam as partes em partes de um todo. Aparecem assim qualidades novas e inéditas, qualidades não isoláveis do todo, irredutíveis às qualidades e propriedades dos componentes. A estas qualidades chamam-se emergências” (Robin Fortin, Pensar com Edgar Morin, Instituto Piaget, Lisboa, 2014, p. 54). É o que acontece, com Messi e já aconteceu com Ronaldo, quando jogam nas selecções nacionais dos seus países e que são vivamente criticadas por comentadores televisivos e doutros órgãos da Comunicação Social que, com ar sisudo, algo conselheiral, os recriminam pelo “desinteresse” que manifestam (dizem eles), sempre que envergam as camisolas das equipas representativas, respectivamente, da Argentina e de Portugal. O Dr. Monge da Silva inteiriçou a figura e, com galhardia na voz, declamou: “É que tanto Messi como o Ronaldo são elementos doutras totalidades, que são os clubes onde jogam habitualmente”. E acentuou: “Eles são elementos doutras totalidades, que não são as selecções nacionais dos seus países”. E murmurou, por fim: “Mas, para chegar rapidamente a esta conclusão, é preciso estudar mais do que futebol. E, de facto, o Edgar Morin é um dos autores indicados”.
Monge da Silva (digo-o sem qualquer receio): já foi, em Portugal (e não será ainda, hoje?) a coluna mestra da teorização do treino desportivo. E teorização, de facto, que nascia de um profissional que nele (no treino) tão denodadamente trabalhou. E repetia, feliz, a sua costumada frase: “Para mim, uma teoria, sem prática, para nada serve”. E, simpático, ainda me perguntou: “Você tem uma frase que quer dizer isto mesmo…”. Respondi-lhe, imediatamente: “A prática é mais importante do que a teoria e a teoria só tem valor, se for a teoria de uma determinada prática”. A teoria, por si só, não transforma. A transformação acontece, quando a teoria é materializada na prática. A transformação não é um plano, um projecto, uma ideia, mas um trabalho que, objectivamente, transforma a própria realidade. E Monge da Silva, com a alma no olhar e no sorriso fresco, continuou: “Que a prática não é teoria, é realidade inquestionável que se observa, no treino desportivo. Há rapaziada, recém-licenciada, que teoriza primorosamente o treino desportivo, e não sabe liderar uma equipa profissional desportiva. É que o trabalho do treinador, como prática, não se resume a um trabalho ideológico, espiritual, especulativo. O treino tem, principalmente, uma dimensão histórica, objectiva, material”. De facto, eu não fujo ao que diz o Monge da Silva, natureza rica, múltipla e variada, com indiscutível papel de relevo, no desenvolvimento do Desporto, em Portugal: a teoria não é prática, mas uma actividade que perspectiva e antecipa uma nova prática e portanto, em determinados momentos, não dispensa e supõe uma revolução ao nível das mentalidades. A prática está no princípio da teoria mas, porque toda a teoria representa uma opção, uma escolha, sem teoria a prática não nos diz, com manifesta nitidez, nem quem é, nem a que vem. Já com o “Sapere aude” (ousa saber) de Kant, a teoria é bem mais do que um apêndice da prática…
Voltei a questionar o Monge da Silva: “O que é, para o meu Amigo, o treino?”. E ele: “ É um método de aproximação à realidade humana e material, que constitui o Desporto, e à sua complexidade”. E prosseguiu, sempre apoiado na sua prodigiosa memória e no seu coração magnânimo: “Quando o Manuel Sérgio começou a ensinar que o desporto era mais do que desporto, fundamentado no conceito de totalidade da escola hegelo-marxista, apontou uma realidade que a toda a hora se verifica no Desporto, a começar no treino”. Aqui, interrompi o Monge da Silva, para referir: “De facto, o meu conceito de totalidade radica na escola hegelo-marxista, mas não escondo que um dos meus mestres é também o Padre Teilhard de Chardin que produziu uma frase maravilhosa, cientificamente fundamentada, que eu não esqueço nunca: A matéria destila espírito, ou seja, não há matéria sem espírito, nem espírito sem matéria. Quero dizer-lhe, a propósito, que considero Teilhard de Chardin um dos predecessores de ILya Prigogine, de Gaston Bachelard, de Edgar Morin e alguns mais, quero eu dizer: todos aqueles que perceberam, logo durante os princípios do século passado, que tudo é complexo”. Monge da Silva continuou: “Por isso, no treino, não há soluções-pronto-a-vestir, nem métodos-pronto-a-vestir. Prefiro a sua periodização antropológica e táctica à periodização táctica de que tanto se fala. É que são os jogadores, que vou treinar, que me determinam as características do treino que vou liderar”. Não tenho qualquer receio em salientar que, antes de Monge da Silva, no nosso país, os parâmetros do treino eram observados e estudados, isoladamente, cartesianamente. E foi a sua informação exaustiva, o seu estudo incessante que dele me aproximou. Foi o Monge da Silva que, em plena década de 70, me ensinou o que era o treino desportivo. Com José Maria Pedroto, Artur Jorge, Fernando Vaz, José Mourinho, Jorge Jesus. Já no campo da Gestão do Desporto não escondo o que aprendi com o Prof. Gustavo Pires. Tive, de facto, bons mestres. Raras vezes, a eloquência do orador e a eloquência do professor se encontram reunidas na mesma pessoa. Mas estes, de Desporto, muito me ensinaram. Por amor à Verdade o digo. Contra ventos e marés."

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