quarta-feira, 5 de junho de 2019

AOS TROPEÇÕES DA MEMÓRIA


"Ainda não cheguei ao ponto de amarrar os atacadores do pé esquerdo nos do pé direito, mas talvez não falte muito.

Acho que, com o passar do tempo, o verbo tropeçar se conjuga cada vez mais na primeira pessoa do singular. Dou por mim a tropeçar em tudo e mais alguma coisa. Tropeções dolorosos que me fazem descer apoiado nos rins pelas escadas mais íngremes; tropeções ainda mais dolorosos que me fizeram, há pouco, escrever sobre a final da Taça de Portugal de 1969 a 22 de maio como se não tivesse sido a 22 de Junho; tropeções estúpidos que me tiram as palavras que ia a escrever no qwerty e me deixam, especado, à espera que elas surjam de repente num recanto desmemoriado das lembranças nas quais, por sinal, também tropeço. Ainda não cheguei ao ponto de amarrar os atacadores do pé esquerdo nos do pé direito, mas talvez não falte muito.
Outro dia almocei com o meu muito querido Fernando Chalana, esse menino que dava pontapés certeiros na empanturrada imagem deste mundo, como diria o Torga, e vi como ele tropeça naquilo em que se tornou, fechado nos corredores do seu talento infinito. Então tropecei também na tristeza. E logo a seguir, tropecei na morte porque cada vez tropeço mais na morte ou a morte começou a surgir-me na vida quase todos os dias, menos inesperadamente do que nunca, mais inoportunamente do que nunca, maldita mulher esgadelhada da gadanha que vive obcecada pela cegueira das suas colheitas.
O Vítor Campos, que era a meias com o Gervásio, um dos maiores apepinadores que já conheci, certa vez, em São João da Madeira, farto de levar pancada de um jogador da Sanjoanense que, pobre dele, não tinha mais nada para dar, dirigiu-se-lhe com um ar muito grave: «Olha, sentes-te bem? Vejo-te muito pálido. Com um aspecto horrível. Não deves andar bem de saúde. Acredita em mim que sou médico». Acreditou. Não voltou para a segunda parte e deixou de morder as canelas ao Vítor. E o Vítor não voltou a tropeçar nele.
Carlos Aldabe, El Cacho, foi um jogador argentino dos anos-30 e 40. Em 1949, já no final da carreira, na Colômbia, foi nomeado jogador/treinador do Millionarios, de Bogotá. Havia uma razão bastante prática para que o presidente do clube, Alfonso Senior, tomasse essa decisão. El Cacho era amigo próximo de Adolfo Pedernera e Pedernera era tão Pedernera como Chalana foi Chalana. Só que era canhoto e Chalana fingia apenas ser canhoto. Era uma daquelas partidas que a arte do Fernando nos pregava. Uma ilusão de ótica, se quiserem. Jogava com o pé esquerdo como se jogasse com o direito. E com o direito como se fosse o esquerdo.
Pedernera teve, na América do Sul, tanta fama como Di Stéfano, mas enganava os adversários de uma forma muito própria: fingia que fintava com o pé esquerdo e, em seguida, fintava mesmo com o pé esquerdo. Toda a gente estava a ver o truque. Toda a gente percebia a prestipeditação, se a palavra existe. Mas não era por isso que Pedernera deixava de os enganar a todos. 
 El Cacho foi a Buenos Aires com cinco mil dólares no bolso para trazer Pedernera. O tempo foi passando e não apareciam nem Cacho nem Pedernera e, como tal, nem os dólares. Alfonso Senior rogou-lhe pragas. Convenceu-se de que tinha sido engazopado como a velha tia do Costa de África. Finalmente, recebeu um telegrama: Pedernera aceitara os cinco mil dólares mas queria mais 200 por mês. Alfonso suspirou de alívio e respondeu com uma só frase: «Traz o homem!».
Pedernera valia o seu peso em ouro. De cada vez que jogava, os estádios enchiam-se de gente excitada perante as maravilhas prometidas pelo seu pé esquerdo. Mas o Millionarios só perdia. Então Perdernera voltou a Buenos Aires e trouxe consigo Néstor Rossi e Alfredo Di Stéfano. Eles fizeram do Millionarios a melhor equipa do mundo do seu tempo. Alfonso Senior declarava que era assim e ponto final.
Quatro anos antes de Pedernera ter chegado, Efraín Sánchez saiu do Millionarios e foi para a Argentina, jogar no San Lorenzo. Chamavam-lhe El Caimán e era um tipo que tropeçava diariamente com a tristeza e com a solidão. Os argentinos estavam zangados. Acusavam os colombianos de lhes roubarem os melhores jogadores. No jornal La Epoca, um editorial trazia esta frase: «São autênticos canibais! E nós temos de decidir se nos comportamos como pombos cobardes ou vamos combater esta guerra com eles». Combateram. Fizeram os impossíveis para impedir que as transferências para o campeonato colombiano fossem proibidas e recorreram mesmo aos ofícios da FIFA. A federação da Colômbia esteve-se nas tintas: saiu da FIFA.
El Caimán regressou a casa e, desta vez, tropeçou na felicidade jogando pelo Deportivo Calí, um clube que decidira enviar ao Peru um avião e trazê-lo de volta com 14 jogadores peruanos. Um dia, Efraín não evitou a pilhéria: «Ando pelas ruas e tropeço em peruanos». Ora bem: eis algo em que ainda não tropecei. Pelo menos na última semana."

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