"O videoárbitro é um bem para a verdade desportiva mas é muito perigoso para os maus árbitros e para os comentadores submissos
O VAR veio trazer um instrumento muito importante para a defesa da verdade desportiva. Porque cria condições para eliminar parte muito significativa do erro humano e porque permite a todos os espectadores televisivos dos jogos com videoárbitro acompanharem com melhor conhecimento de causa as decisões de arbitragem.
Tem, porém, um problema pouco recomendável a todos aqueles que, na arbitragem, defendem o princípio corporativo de que o árbitro tem sempre razão. O VAR oferece a oportunidade óbvia de aproximar o simples adepto do especialista das leis de jogo. Mais: dá, ao adepto, razões efectivas para poder interpretar com malícia, ironia, teorias de conspiração, dúvidas de carácter ou benevolente tolerância humana, aquilo que são os erros inexplicáveis, que todos veem, ou estariam obrigados a ver.
Aberto o VAR, e passado tempo suficiente para se formar uma opinião mais sólida sobre o assunto, poder-se-á dizer que a videovigilância dos lances de futebol é uma boa garantia de corrigir erros, confirmar boas decisões ou, e essa é parte mais perigosa, expor, mais do que o erro, a notória incompetência do árbitro ou do videoárbitro que, em casos limite, que já não são poucos, acaba por provar uma incapacidade total, de alguns, para a função.
Também é verdade que obriga a que os comentadores televisivos deixem a sua habitual zona de conforto. Falamos, em especial, daqueles que têm por tarefa, que não é nada fácil, acompanhar os jogos em directo e ter uma opinião, na hora, sobre os lances. Há, com óbvias e elogiosas excepções, uma tendência para a desculpabilização do árbitro, sobretudo, quando o erro favorece as equipas mais fortes, mais poderosas, com maior número de adeptos e, por isso, com mais utentes televisivos. O esconderijo da falsa subjectividade da apreciação de um lance que é de uma evidência absoluta, o refúgio no conceito de que é tudo uma questão de interpretação, de muita ou pouca intensidade da acção de prevaricador, de que todas as coisas podem ser pretas, torna-se, por vezes, um padrão de análise que segue uma cartilha mais virada para os interesses do detentor dos direitos televisivos, do que do espectador, o que oferece uma inquietante ideia de que nem todos os comentadores se sentem suficientemente livres para fugirem ao lugar comum e às regras preestabelecidas de um comportamento domesticado e submisso.
A última e não menos importante questão que o VAR coloca, é a de que se trata de um instrumento que favorece o adepto infractor, ou seja, o adepto que não vai ao estádio e que, refastelado no sofá, a beber uma cervejinha e a comer pipocas, ainda tem o privilégio de ver a repetição das lances, à medida que o videoárbitro julga, enquanto que o espectador, no estádio, apenas pode lamentar aquele incómodo do tempo de espera para saber se deve voltar a pular de alegria por um golo validado, ou achar se deve voltar a pular de alegria por um golo validado, ou achar um desperdício as emoções de alegria que, afinal, tinham sido despropositadas, o que deixa qualquer pessoa com um sentimento de tofó sem redenção.
O que eu defenso é que, mais tarde ou mais cedo, o espectador, no estádio, não pode deixar de acompanhar, nos écrans gigantes, os lances em análise e, inclusivamente, ter acesso a uma posterior explicação, curta e concisa, da decisão final, tal como já sucede em desportos mais organizados e mais preparados para os tempos modernos. Bem sei que me dizem que o futebol gera emoções demasiado fortes para ser tão transparente. Não me parece aceitável. A capacidade de adaptação humana, ao novo, é quase infinita.
(...)"
Vítor Serpa, in A Bola
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