segunda-feira, 17 de fevereiro de 2020

APRENDER COM ROMA


"O calendário na parede, assinalado compromissos e projectos futuros, é aquilo que nos tira alguma energia que podíamos canalizar para o presente

Calendário
1. Na Roma antiga, todos os nobres emprestavam dinheiro - a usara não era uma questão de bancos ou instituições. Como se lembra no primeiro volume da História da Vida Privada, todas as famílias tinham em casa um cofre a que se dava o nome de Kalendarium; e, ao lado havia um calendário, tal qual o entendemos hoje, assinalando os dias que já haviam passado desde o empréstimo de uma determinada soma em dinheiro.
«Deitar dinheiro ao calendário» significava colocar dinheiro nesse cofre, Kalendarium, para ser emprestado, com juros, no futuro.
O dinheiro, o cofre, era visto na Roma antiga como sinónimo de futuro. Ter futuro, ter calendário, era ter futebol - eis uma interpretação possível.
Sem cofre ou com cofre vazio não havia kalendarium e cada cidadão estava, assim, completamente no presente. Não se usar tudo agora (dinheiro ou energia) porque se quer guardar para mais tarde. Eis o princípio do cofre e do calendário. Ter futuro é isso, para o bem e para o mal.
Por outro lado, o calendário na parede, assinalando compromissos e projectos futuros, pode ser visto como aquilo que nos tira alguma energia que podíamos canalizar para o presente.
Não penses no calendário, no futuro, não tenhas toda a tua energia no acontecimento de hoje - eis o que poderia recomendar um filosofo epicurista ou um treinador.

Poder, lua e descanso
2. Muitos se reformam ou abrandam - na política, empresas, desporto ou qualquer outra área. Na antiga Roma eram poucos os imperadores que conseguiam passar o descanso; quase sempre acabavam a sua carreira, não por doença ou cansaço mas à facada (quando mortos por aliados ou amigos) que por estarem próximos fisicamente podiam usar uma lâmina curta, ou a golpe de espada, lâmina mais longa (pelos inimigos ou por relações mais distantes). E eis, parece-me uma boa divisão: ser assassinado com punhal ou com espada, ser assassinado por amigos ou inimigos. Quem se maltratou mais durante a vida, a faca (a má-língua, a inveja, a raiva) dos próximos ou a espada dos que vivem afastados de ti? Dilema não apenas Romano.
Mas dizíamos, são raros os imperadores romanos que podiam gozar de uma velhice qualquer. Morriam quase sempre bem antes disso. Uma excepção foi Diocleciano, que abdicou do poder no ano 305 depois de Cristo. E foi, como hoje diríamos, para a sua terra, afastando-se do grande centro das decisões do Império. Peter Jones, estudioso da Antiga Roma, lembra a famosa resposta de Diocleciano quando insistiram para ele voltar ao mundo do poder:
«Se ao menos pudessem ver as couves que plantámos em Salona com as nossas próprias mãos, nunca mais voltariam a pensar que essa era uma possibilidade tentadora».
O que vale o poder de Roma ao pé das couves plantadas em Salona?
Uma das mais célebres renúncias ao poder e à luta entre humanos.
Preferir a luta do homem com a natureza; luta, sim, mas também amizade, que existe no cultivo simples de couves e de outras formas comestíveis da terra existir.

Dor
3. O elogio ao estoicismo, essa forma de viver que, entre muitas outras coisas, assume a resistência à dor física como um bem mental essencial. Em várias actividades do homem, em muitos cidadãos e atletas, vemos casos incríveis de resistência à dor.
Há exemplos clássicos. Na mesma obra Veni, Vidi Vici relembra-se a biografia que Plutarco dedicou ao Cónsul romano Caio Mário. Nessa biografia é muito evidente a obstinação e resistência física de Mário. Plutarco conta que, insatisfeito com varizes pouco estéticas nas pernas, Mário «pediu a um cirurgião que as removesse». Enquanto durava essa operação terrível, sem qualquer sedação de nenhum tipo, Mário não pestanejou nem emitiu um som. Quando o cirurgião acabou de tratar uma perna, perguntou a Mário se devia ocupar-se da outra. Mário inspeccionou o que fora feito e respondeu: «Não. As melhorias não justificam a dor».
Perante a dor um impávido e simples não."

Gonçalo M. Tavares, in A Bola

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