segunda-feira, 3 de fevereiro de 2020

POESIA E FUTEBOL


"Gonçalo M. Tavares pode saudar-se como um dos grandes escritores, portugueses e europeus, do nosso tempo. Actual professor da Faculdade de Motricidade Humana, colho do seu Livro de Dança o poema seguinte:
“o dedo que é só dedo nem sequer é dedo
o corpo que é só corpo só tapa o espaço só tapa o espaço
só tapa o espaço
- deixem-me ver o espaço
ou então
-deixem-me ver tudo
(para que importa exibir o corpo se é só para exibir o corpo; só importa
exibir o corpo se é para exibir o que não é corpo)
para que importa exibir o corpo se é só para exibir o corpo?”.
O poeta Eugénio de Andrade, num livro que fez história, Poesia, liberdade livre, escreveu: “De Homero a S. Juan de la Cruz, de Vergílio a Alexandre Blok, de Lio Po a William Blake, de Basho a Cavafy, a ambição do fazer poético foi sempre a mesma: Ecce Homo (Eis o Homem) parece dizer cada poema”. Na leitura crítica da poesia, ou seja, após um estudo lúcido e interrogativo, é o autor que emerge, sobre o mais, dando sentido ao processo poético. António Ramos Rosa, também poeta de grande originalidade, no seu livro, A poesia moderna e a interrogação do real – assinala que a liberdade da linguagem poética não nega, acentua a “experiência vital, por vezes exaltante, que subjaz ao poema”.
Não há fenómeno cultural que, para compreender-se, não deva compreender-se antes o homem que o produziu. Escrever um poema é a revelação originária do poeta criador. Por isso, venho dizendo, há algum tempo já, que no futebol não há saltos, mas homens (e mulheres) que saltam, não há fintas, mas homens (e mulheres) que fintam; não há remates, mas homens (e mulheres) que rematam. À semelhança da poesia, nos remates e nas fintas e nos saltos, há a revelação originária daqueles (daquelas) que os produziram. Quando a poesia se adensa e indetermina, tal significa que o homem-autor ainda está por conhecer. O Homem é um ser em perpétua e constante redefinição...
Não conheci (posso mesmo adiantar: e não conheço), no mundo do futebol, nem em Portugal nem no estrangeiro, um treinador com a cultura literária do treinador de futebol, Fernando Vaz, infelizmente já falecido e jornalista de A Bola. Um dia (julgo que na década de oitenta) encontrei-o no bar do Hotel Tivoli, em Lisboa, na Avenida da Liberdade. Ele tinha entre mãos um livro. Disparei a pergunta: Que livro é esse? E ele: “É um livro do Manuel Alegre”. E, com um sorriso cordial, acrescentou uma frase de grande generosidade e simpatia: “Quando será que os homens do futebol descobrem, como o meu amigo o diz tantas vezes, que livros, como este, nos ajudam a uma melhor compreensão do futebol?”. E lá volto eu, com os meus quase oitenta e sete anos, a repetir-me: é que o futebol, como o desporto, é uma Actividade Humana, não é só uma Actividade Física. Quem ainda não entendeu isto sabe bem pouco de futebol.
Nas tácticas de Josep Guardiola, de José Mourinho, de Jorge Jesus, de Jesualdo Ferreira ou de qualquer outro treinador; no instante criador de golos inesquecíveis – há, antes do mais, pessoas. Ou se conhecem as pessoas, ou não se entendem, nem as tácticas, nem os golos. Como é lógico! O meu Amigo, Dr. Aldo Rebelo, ilustre e antigo Ministro da Ciência e Tecnologia, no Brasil, ofereceu-me, em Brasília, o livro A Pátria das Chuteiras, do jornalista e escritor Nelson Rodrigues, um dos grandes intérpretes do Brasil, tendo no futebol a sua grande metáfora. Nele encontrei o seguinte, de um artigo que o Nelson publicou, em Janeiro de 1959: “Amigos, o meu personagem do ano de 1958 tem de ser um jogador do escrete que levantou a taça do Campeonato do Mundo. Mas é um problema catar, num time invicto, um jogador que seja, exactamente o símbolo pessoal e humano desse time e desse escrete. E logo um nome me ocorre, de uma maneira irresistível e fatal: Pelé! Olhem Pelé, examinem suas fotografias e caiam das núvens. É, de fato, um menino, um garoto. Se quisesse entrar num filme da Brigitte Bardot, seria barrado, seria enxotado. Mas reparem: é um génio indubitável. Pelé pode virar-se para Miguel Ângelo, Homero ou Dante e cumprimentá-los, com íntima efusão: Como vai, colega?”. É que, em Miguel Ângelo, Homero, Dante e Pelé, há o que de melhor tem a arte, isto é, há poesia! E se procurássemos, todos nós os que vivemos atentos e presos ao futebol, a poesia que dele desponta? Seriam outras, com toda a certeza, a lucidez e a serenidade, nas conversas que se escutam sobre o “desporto-rei”. E muito menor o agressivismo verboso, a diatribe exibicionista, venenos da sociabilidade que, por vezes, o sacodem.
O Presidente da República de Cabo-Verde, o escritor e poeta (para mim, poeta, acima de tudo) e jurisconsulto e político, Doutor (em Direito) Jorge Carlos Fonseca publicou, há um mês, mais um excelente livro da sua autoria, Em tempo de Natal e da Morna, a mosca viajou gratuitamente na executiva. É nome, dos maiores, da cultura (esse poema, vivo e profundo, que desponta da experiência vivencial de um povo) cabo-verdiana e da língua portuguesa. A sua filosofia da alteridade (quero eu dizer: do conhecimento e do respeito e da simpatia, pelo seu semelhante) aproxima-o do "personalismo" de Mounier - o Mounier que nos ensinou: "A verdade de cada um só existe, quando em união com todos os outros" (O Personalismo, ariadne editora, Coimbra, p. 42). Por sorte minha, o Doutor Jorge Carlos Fonseca é um querido Amigo que jamais poderei esquecer. Neste seu último livro que, parecendo um diário, é mais do que um diário, onde surge, como sempre, como um dos escritores mais insatisfeitos, um dos mais eloquentes, um dos mais capazes de agitar ideias, de entre os hodiernos escritores em língua portuguesa - escreveu ele: "Quem disse que amar é simplesmente não conhecer a pessoa amada? Ou não a tocar? Terei sido eu? Provavelmente, sim, quando sentado numa mesa rectangular do quarto do hotel, a imagem do bem-humorado Papa Francisco ainda na minha mente, computador e gentilezas da gerência à frente, redigia discurso para a cerimónia de atribuição do grau e título de DHC, em Dakar, e espreitava, de vez de quando, no televisor com o écran guinado à direita, um fraco jogo de futebol" (p. 97). O Papa Francisco! O discurso! Um jogo de futebol! Afinal, um verdadeiro caos. Só que, num poeta, como Jorge Carlos Fonseca o é, o caos é generativo e ordenador. Num poeta, pecar é resistir à possibilidade de passar da des-ordem a uma ordem mais alta, mais perfeita. Jorge Carlos Fonseca, um poeta que é político. Cabo Verde: um país onde a política é poesia!
E termino com uma poesia de que sou autor (peço desculpa, pela ousadia) e que dá pelo título de Uma bola e um menino:
Aquele menino tem numa bola
A liberdade que não tem
Bola redonda sonora
Galgando muros batendo em portas
Hora a hora
No sossego das ruas mortas

Bola redonda e sonora
Nunca rolou nos estádios
Entre os gestos rubros das multidões
Que um anseio crispado levanta
Mas vê-a nimbada de clarões
O menino que com ela cisma e canta

Bola redonda e sonora
Transforma-se em brisa pelas ruas
E então ninguém chama o menino
Atrás da bola a brincar
Correndo para além de si
Porque não pode voltar

Bola pequena e aventureira
Entre os pés de uma criança
Que inventou o infinito
Com uma bola multicor
E a paisagem bucólica
Dos caminhos onde for

E o que interessa
Depois
Aos dois
A uma bola e um menino
Correr correr correr
Ir sem destino?"

Manuel Sérgio, in A Bola

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