A vida é demasiado curta, para podermos esperar que as ciências nos resolvam os mais instantes problemas, ou até os grandes enigmas que diante de nós se levantam. E surge o refúgio da Filosofia, a qual toca em temas que procuram entender (e resolver) a nossa aventura existencial. Mas, será a Filosofia um mero saber do que resta da nossa investigação experimental? Sobreviverá a Filosofia tão-só como a serva do conhecimento positivo? A dramática interrogação da Filosofia, acerca do ser humano, como reflexo e projeto de um espaço e de um tempo, será de empurrá-la para o entulho das coisas inúteis?
Todo o saber científico é antecedido de um saber pré-científico, de um número incontável de obstáculos epistemológicos, que deixam, muitas vezes, os estudiosos vencidos, de cabeça tombada sobre o peito. Chegou então o momento da “rutura epistemológica”, do “corte epistemológico”, acompanhados da lógica da descoberta científica e de um olhar crítico e reflexivo sobre as ciências. O conhecimento científico não nos fornece senão “um conhecimento provisório” (Popper) e “aproximado” (Bachelard) e… “em constante modificação” (Popper) e “retificação” (Bachelard). Foucault também refere, com aprovação, a descontinuidade na história das ciências mas defende, com acentos vigorosos, que “as ciências humanas não falam do homem”. De facto, a imagem tradicional do homem, apresentada pelo humanismo clássico, não tem lugar, na epistemologia de Foucault; ele ignora, por completo, que o homem é o sujeito da história. A história, para Foucault (e para os estruturalistas) não é carismática, mas estrutural. Não foi o Hitler, isolado na sua arrogância, que fez o nazismo, nem o Estaline, convencido até à teimosia da sua interpretação do marxismo-leninismo, que inculcou o comunismo soviético no povo russo, mas as inter-relações estruturais económicas, políticas, sociais, éticas, religiosas, que vão muito além do que faz e pensa e pode uma pessoa só.
Quando se estuda o Desporto (o Jogo Desportivo) e a Dança e a Ergonomia e a Reabilitação, sob a exclusiva influência do positivismo, como alguns saudosistas e retrógrados ainda o pretendem fazer e porque o modelo das ciências da natureza se revela insuficiente, inadequado ao estudo do “fenómeno humano”, depressa ressurgem questões várias: “o que é o ser humano? E como estudá-lo? É dispensável a filosofia, no estudo do ser humano?”. O ser humano, porque síntese do natural, do social, do espiritual, só com interdisciplinaridade pode estudar-se. E a interdisciplinaridade só pode praticar-se, com eficiência, se os investigadores (ou pesquisadores) dominarem a teoria do conhecimento, a ética, a lógica e a epistemologia, de modo a tornar-se viável o número necessário e suficiente de pontes, que permitam um diálogo crítico entre iguais. A constituição de uma equipa de trabalho (ou até de um departamento de futebol) exige, portanto, um grupo, cuidadosamente escolhido, composto por especialistas em determinadas áreas do conhecimento; o estabelecimento de conceitos-chave, resultantes de um empreendimento comum; os grandes objetivos da problemática que se investiga; a repartição rigorosa das tarefas a realizar; os resultados obtidos pelos diferentes cientistas e a síntese final – têm de significar o surgimento de um novo atleta, de um novo bailarino, de um novo paciente e até de um novo conceito de homem. Um novo conceito de homem (e mulher) aberto ao diálogo, pois que a interdisciplinaridade é afinal diálogo, sobre o mais. Um ponto ainda a ter em conta: a independência e a distinção entre as ciências humanas e as ciências da natureza, pois que me parece incontroverso que os objetivos do ser humano nem sempre podem coincidir com os da natureza, embora não existam fronteiras rígidas entre as diferentes áreas do saber. Num país, como o nosso, de arraigada tradição positivista de pendor comteano, bem visível na formulação de uma visão estritamente materialista e mecanicista do ser humano, incluindo a sua atividade psíquica, julgo dever assumir-se, neste contexto, que a motricidade humana (o movimento intencional e solidário da transcendência) nos diz que a morte de Deus é também morte do homem e que o encontro com o Infinito é movimento e transcendência.
“A ideia de Infinito, escreve Levinas no seu En Découvrant l’Existence avec Husserl et Heidegger, mantém-se na relação com Outrem. A ideia de Infinito é a relação social” (p. 172). Um treinador desportivo transcende-se, quando sabe que é o humano, na sua totalidade, o fundamento de tudo o que faz, como treinador. E, portanto, apelando sempre, no seu trabalho, à interdisciplinaridade. Passo a palavra a Hilton Japiassu (um dos nomes maiores da epistemologia contemporânea) no livro Interdisciplinaridade e Patologia do Saber: “Nos nossos dias o conceito de interdisciplinaridade está meio na moda. Na Europa e nos Estados Unidos, sobretudo nas instituições universitárias e de pesquisa, numerosos são os pesquisadores e planejadores a fazerem apelo crescente à metodologia interdisciplinar. Talvez possamos ver, nessa reivindicação, certo esnobismo. Se porém analisarmos melhor esse fenómeno, descobriremos que essa exigência (…) talvez seja mais o sintoma da situação patológica em que se encontra hoje o saber. A especialização exagerada e sem limites das disciplinas científicas, a partir sobretudo do século XIX, culmina cada vez mais numa fragmentação crescente do horizonte epistemológico. No final de contas, para retomarmos a célebre expressão de Chesterton, o especialista converteu-se neste homem que, à força de conhecer cada vez mais sobre um objeto cada vez menos extenso, acaba por saber tudo de nada (…). É inegável (…) que os estudos interdisciplinares constituem um dos temas fundamentais, não somente dos cursos de pós-graduação nas áreas mais sensíveis aos problemas epistemológicos das ciências humanas, mas também dos seminários, simpósios e congressos internacionais” (pp. 40/41). Conheci e tive a honra de conviver com três geniais treinadores de futebol. Por ordem alfabética: Jorge Jesus, José Maria Pedroto e José Mourinho.
É evidente que, de futebol, fui eu o discípulo e eles os Mestres. Eu tenho o gosto e sinto a necessidade de aprender e eles, Mestres que são, muito me ensinaram. O que Jorge Jesus tem conseguido no futebol sul-americano (e no português); a revolução (que até epistemológica foi) levada a cabo por José Maria Pedroto e Jorge Nuno Pinto da Costa, no universo “portista”; o currículo de José Mourinho, que o põe a par dos melhores treinadores da história do futebol – de todos estes homens colhi uma lição de humildade, de inteligência, de probo e austero labor. A José Maria Pedroto tudo o aproxima de nós: a sua bonomia maliciosa, o seu epicurismo discreto, a sua insuperável argúcia na análise do futebol, a sua liderança imperturbável, mas de um rigor milimétrico. O Jorge Jesus, que parece fazer da sua profissão um festim dionisíaco, ama o futebol e, porque o ama, conhece-o como ninguém. O atual treinador do Flamengo, um prático, no sentido mais puro do termo, tem ainda uma qualidade como eu não sei se alguém terá com tanta perfeição: uma excecional leitura de jogo. O Jorge Jesus entrará um dia no “clima de ouro da imortalidade”, porque ele (como nunca vi) “adivinha as jogadas” e sabe resumi-las, designadamente aos jogadores, num estilo másculo, breve, lapidar e numa linguagem forte e penetrante, tanto do agrado dos seus pupilos. Sem ostentação universitária e académica, ele é mais do que tudo isso, ele é o futebol! O José Mourinho já chegou ao pódio, para onde se dirige o Jorge Jesus. É o treinador português (repito-me) de melhor currículo. Mas eu, hoje, queria felicitar o Jorge Jesus. Ninguém, melhor do que ele, sabe conciliar a Razão com a Fé. São poucos os que, como ele, já vivem hoje o futebol do futuro.
Meu querido Jorge Jesus, ninguém, melhor do que o meu Amigo, representa, no futebol, um necessário e urgente e tríplice protesto: contra o saber fragmentado, em migalhas, de alguns especialistas e de alguns dirigentes; contra a esquizofrenia intelectual de alguns cursos superiores de desporto, divididos e subdivididos em disciplinas e departamentos, quando o sujeito que se estuda é um só: o ser humano; contra o conformismo das situações adquiridas e a velhice de meia dúzia de ideias indiscutidas ou impostas. Quando o Jorge teve a bondade de comunicar-me que aceitara o convite do Flamengo, a minha resposta foi esta: “Nem pense duas vezes. O meu Amigo, no Brasil, pode sofrer muito, mas vai triunfar, por fim”. E triunfou. Como só os génios podem triunfar! O seu trabalho imortaliza-se, pela verdade humana que encerra. O humano, no meu Amigo, está profundo e estratificado. Não morrerá nunca. Mas o que é o paradigma que norteia e fundamenta o futebol senão uma ciência humana?... Eu chamo-lhe Ciência da Motricidade Humana, o que origina, em algumas Faculdades, ondas de ódio antigo, entumecido, vociferante! O termo “motricidade humana”, se bem que relativo, incompleto, precário, parece-me ter a lógica suficiente, que um homem culto entenderá. Mas, termino, meu querido Amigo, com um abraço fraterno e grato, pelo muito que aprendi consigo. E foi tanto o que aprendi consigo (aprendi e aprendo, pois que o diálogo ainda não acabou) que chego a rever-me orgulhosamente em tudo do que o meu Amigo faz, como treinador de futebol. Por cá, neste nosso País, como diriam os meus pais; “tudo como dantes: quartel-general em Abrantes”. Há dirigentes, nos clubes de futebol, que sofrem de “neblina mental”, ou seja, sabem tudo… de nada! Ora, o ser humano é uma síntese de tudo e é o ser humano que joga futebol! Cá o espero, para os nossos almoços. Portugal espera pelo meu Amigo! Não exagero, pode crer!
Manuel Sérgio in a Bola
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