terça-feira, 5 de maio de 2020

MODELO DE FINANCIAMENTO DO DESPORTO EM PORTUGAL: SOLUÇÕES PÓS-COVID-19


"A desregulação do sistema desportivo em Portugal origina, entre outros, problemas de financiamento, quer pelo desajuste do próprio modelo quer pela entropia que gera no próprio sector. Este facto é tão mais determinante, porquanto se desconhecem as consequências da pandemia COVID-19, ao nível do financiamento, assente num determinado modelo do desporto em Portugal. 
Isto não significa, porém, que a questão se subsuma à desorganização sistémica, cuja resolução deveria ser uma prioridade antes de qualquer modificação da estrutura e modelo de financiamento existentes, começando pela descriminação em cada uma das OD’s com utilidade pública desportiva (UPD) e financiamento, especialmente as de cúpula (Comité Olímpico e Paralímpico de Portugal; Confederação do Desporto e Fundação do Desporto de Portugal; Federações Desportivas (FD’s); outras organizações desportivas):
I) Da missão, competência e sua fundamentação em face da UPD (que pode ou não garantir a sua continuidade) e dos recursos disponíveis para o desenvolvimento da actividade (humanos; materiais; organizativos) e respectivo financiamento público;
II) Dos resultados, actuais e históricos, em face da sua missão institucional e financiamento disponível.
(In)dependentemente deste trabalho de reorganização, a realidade é que face à relevância do desporto, em diferentes esferas de intervenção social, o financiamento público que existe não representa a cadeia de valor acrescentado que a prática de exercício físico (EF) e de actividades desportivas (AD) pressupõem ao longo da vida (benefícios para o praticante, para os espectadores, para os voluntários, dirigentes e outras actividades profissionais no âmbito do mercado do desporto, além do mercado não relacionado com o desporto).
Basta comparar o modelo de sustentabilidade financeira do desporto em Portugal, que se caracteriza por níveis de financiamento público dos mais baixos a nível europeu (aproximadamente 40 euros/hab) e com um orçamento que corresponde a 0.04% da despesa total (96,885 mil milhões de euros) com 40,458 ME, quando os mesmos serviços recreativos, desportivos e comunitários, valem em média 1% da despesa pública na EU.
Este facto sucede em virtude da inadequação das políticas económicas preconizadas pela Lei de Bases da Actividade e do Desporto (LAFD) que foram agudizadas pela deterioração das condições de eficiência económica, conforme pode ser atestado por alguns, poucos, estudos existentes em Portugal sobre a realidade financeira das OD’s.
Num trabalho académico, Carlos António Lopes da FMH, concluiu-se que as 57 FD’s, estudadas entre 2013-2015, enfrentam grandes dificuldades no cumprimento das suas obrigações financeiras, não obstante a existência de outros trabalhos, nomeadamente o realizado pelo COP em 2019, que se circunscreve a 27 Ids, da situação comparada entre o segundo ano do ciclo olímpico anterior (2014) e igual período do ciclo olímpico actual (2018) no que respeita aos exercícios financeiros das federações desportivas com modalidades olímpicas, que evidenciam resultados algo diferentes (neste universo).
Dos oito indicadores económico-financeiros analisados (rácio de liquidez geral; rácio de endividamento global; rácio de estrutura de endividamento; rácio estrutura dos capitais estáveis; rácio de estabilidade do financiamento; rácio de cobertura dos encargos financeiros; rácio do período de reembolso da dívida de curto prazo; margem de autofinanciamento) verifica-se que:
1. Apesar de em média apresentarem uma liquidez geral aceitável, metade das FD’s apresenta valores negativos, com uma fraca solidez financeira, sendo que doze delas apresentam falência técnica nos três anos estudados;
2. As FD’s apresentam bastantes dificuldades na variação das fontes de financiamento, tornando-as demasiado dependentes do Estado. Em média, apresentam um passivo de curto prazo de 91%. Já a margem do período de reembolso da dívida deste grau de exigibilidade foi negativo em 60% das federações.
3. O rácio de estabilidade do financiamento, que traduz a solidez financeira necessária para o desenvolvimento das modalidades, foi em média negativo, sendo mesmo negativo em 15 federações. 
Sendo inequívoca a associação entre o nível de prática e capacidade competitiva dos países e os recursos públicos e privados que são disponibilizados para o sector, facilmente se conclui que sem um modelo de financiamento adequado, o sistema desportivo em Portugal está condicionado, principalmente por todos estes motivos e os que decorrem da crise económica que resultará da COVID-19.
O desporto necessita de um modelo de financiamento que corrija as iniquidades históricas e contextuais existentes (1) e as incoerências de enquadramento legal (2), aprofunde a incorporação da externalização de benefícios económicos (3), indo para além do paradigma patente na LAFD, de financiamento indexado aos lucros das apostas sociais de tradição subserviente e assistencialista.
Há que potenciar, no modelo, o bem-estar que a prática de EF e da AD permitem, através do uso de indicadores económicos que atribua às OD’s os benefícios apropriados pela economia e pela sociedade com a sua ação, como: o valor da diminuição do absentismo laboral, o combate ao sedentarismo, a diminuição da mortimorbilidade, a criação das referências desportivas nacionais e internacionais, a valorização da autoestima nacional, entre outros. Neste particular, três medidas parecem relevantes.

Correcção das iniquidades históricas dos valores de financiamento do desporto
O período de intervenção da troika (crise subprime em 2008) provocou inequívocas alterações, fundamentalmente ao nível do financiamento público decorrente dos diferentes contratos programa com a tutela (IPDJ), com base no regulado pelo disposto no DL 273/2009 de 1 de Outubro, que estabelece o regime jurídico dos contratos programa de desenvolvimento desportivo, com uma redução substancial do orçamento disponível para as actividades e programas de acção das OD’s.
O caso concreto da Federação Portuguesa de Natação (FPN), em 2013 quando comparado com 2012 teve uma redução no financiamento de 26.1% (1.927.864€ em 2012 e 1.424.610€ em 2013), e se nos reportarmos a 2010 o valor do financiamento da Tutela foi de 2.055.390€ o que representou uma redução de 32.7% no espaço temporal de 4 anos (2010 a 2013).
Neste quadro de subfinanciamento, aduzido a níveis de EF e AD e de voluntariado baixos, e condicionalismos ao financiamento privado (com papel quase vestigial, neste âmbito, da Fundação do Desporto de Portugal), por via do consumo das famílias e da falta de investimento do tecido empresarial, seria de elementar justiça que fosse feita, a correcção do modelo, sem as cativações desnecessárias às assistidas entretanto, o que permitiria, pelo menos, a manutenção do quadro de financiamento (com uma injecção adicional de cerca de 10 ME) à s OD’s produtoras do EF e AD. 

Incoerência do enquadramento legal: verbas dos jogos sociais (2)
Urge a reformulação do modelo de financiamento que vigora há décadas e que se baseia no Fundo de Fomento do Desporto (FFD) que existiu até aos anos 90, gerindo os montantes recebidos dos Jogos Sociais da Santa Casa da Misericórdia, que partia do estudo do nível de financiamento do desporto e negociava externamente no Departamento de Jogos da Santa casa da Misericórdia de Lisboa (SCML) os montantes de financiamento destinados ao desporto.
Este modelo foi posteriormente regulado, não necessariamente aprimorado, sendo que, na actualidade, a gestão financeira tem uma dimensão administrativa, perdendo a capacidade de estudo e de negociação enquanto características iniciais do FFD, descurando as especificidades e natureza das OD’s.
O DL 56/2006 de 15 Março define o enquadramento legal da distribuição das receitas provenientes dos jogos sociais, e o DL 67/2015 de 29 Abril, o regime jurídico da exploração e prática das apostas desportivas à cota territorial, regulado pela portaria 315/2015 de 30 Setembro, que fixa as condições de atribuição do montante da receita objecto da aposta a atribuir às entidades a repartir pelos clubes ou pelos praticantes e pela federação que organize o evento.
O que é sintomático e incoerente, neste enquadramento legal supramencionado, é o facto do desporto, gerador da receita dos jogos sociais, não tenha o retorno correspondente; já não digo à sua importância social, mas pelo menos à importância instrumental de veículo de geração de receita a redistribuir.
Somente 10.29 % das receitas geradas são redistribuídas para o ministério de educação, que tutela o desporto, sendo destes somente 8.87% transferidos para o IPDJ para o fomento e desenvolvimento de actividades e infraestruturas desportivas.
No entanto, parte desta verba foi usada para assumir o processo de fusão, no âmbito do Plano de Redução e Melhoria da Administração Central do Estado (PREMAC) com a incorporação numa única entidade, do Instituto do Desporto de Portugal, I.P., o Instituto Português da Juventude, I.P. e, por dissolução, a Fundação para a Divulgação das Tecnologias de Informação e é actualmente usada para financiar outras redundâncias necessárias com a diminuição do orçamento de estado para a despesa estrutural, como a dívida herdada e mapa de pessoal de dirigentes e trabalhadores.
Seria da mais elementar justiça que se promovesse, juntamente com as restantes entidades (ministério da administração interna, estado, presidência conselho ministros, ministério trabalho, solidariedade e segurança social, ministério da saúde, governo regional madeira e açores, santa casa da misericórdia), um acordo para o aumento percentual das verbas para o desporto. Cada 1% de aumento pressupõe um reforço de cerca de 5 ME.
Outra alteração necessária prende-se com a distribuição das receitas directas da exploração e prática das apostas desportivas à cota territorial, nos termos da lei (67/2015) que determina que somente 3.5% das mesmas sejam atribuídas às entidades objecto da aposta a repartir pelos praticantes, consoante o caso, e pela federação que organize o evento, incluindo as ligas se as houver. Urge a necessidade de, também neste âmbito, procurar em sede legal uma justa proporcionalidade contribuindo para o modelo de financiamento do desporto em Portugal aumentando este valor para uma cota territorial maior.

Modelo de financiamento desporto alternativo (3)
A possibilidade de a política desportiva criar um fundo de capital de risco do desporto que permita às OD’s desenvolver actividades não remuneradas pelo mercado, que a política desportiva pública considere prioritárias promover socialmente e cujo custo seja incomportável financiar através do mercado privado podendo, desta forma, fazer face aos custos de qualidade do desenvolvimento desportivo nacional e às dificuldades que surgirão da COVID-19.
O racional centrar-se-ia: i) nos benefícios que a prática de EF e AD geram em termos directos e pessoais (capital desportivo, humano e social), em termos indirectos, públicos e colectivos (saúde e menos afectação de despesa, educação, económica e produtividade, autoestima, identidade nacional, etc.); ii) no cálculo das externalidades económicas decorrentes e a descriminação da origem dos créditos de financiamento apurado; iii) da internalização dos benefícios creditados à ordem da instituição reguladora; iv) reinvestimento nas Dos produtoras do EF e AD.
A promoção da saúde e redução do absentismo laboral da população portuguesa pode ser combatida através do EF, AD e de um estilo de vida activo, sendo que se justifica que o acréscimo de produção desportiva seja financiado triplamente:
I) Pelos créditos obtidos dos benefícios diretos da produção de EF e AD por parte das OD’s apropriados nos restantes sectores, medíveis através da conta satélite do desporto (INE);
II) Pelos créditos obtidos com a descida da despesa no sector da saúde (prevenção e tratamento das doenças não transmissíveis, como as doenças cardiovasculares, respiratórias, oncológicas, mentais e ainda a diabetes) que dele beneficia, assim como das empresas públicas e/ou privadas beneficiadas (diminuição absentismo laboral);
III) Pela venda de créditos de exercício às pessoas/entidades públicas e/ou privadas cujo deficit de prática seja considerado, com base num valor de referência básica, de acordo com as normas internacionais para a prática sistemática semanal de EF e AD (exemplo 3h semana de EF e AD vigorosa), de acordo com a idade.
O processo de obtenção de créditos seria similar aos fundos de capitais de risco de créditos de carbono. Um crédito de carbono é a representação de uma tonelada de carbono que deixou de ser emitida para a atmosfera, contribuindo para a diminuição do efeito estufa. Assim, a partir da diferença dos dois cenários, é calculado quanto de carbono deixou de ser emitido com essa substituição, gerando assim os créditos. O mesmo se passaria para os créditos de exercício, que seria a moeda utilizada no mercado de exercício. Considerando os efeitos benéficos do EF e AD e tendo em consideração os níveis de prática da população portuguesa, definir-se-ia o referencial de prática ajustável, devidamente calendarizado (exemplo 50% de prática em 2021), e da unidade de medida, designada de crédito de exercício físico e AD (CEFAD) correspondente ao valor de referência semanal (1 CEFAD= 3 h, exemplo).
As entidades públicas/privadas com níveis de prática mais baixo do que o referencial e CEFAD, comprariam créditos de exercício para compensar os níveis reduzidos ao mesmo tempo que investiam em projectos de promoção de prática institucional. Assim, por um lado, ajudariam a manutenção do projecto de aumento de prática pelo financiamento e, por outro, procuravam equilibrar o nível de prática com programas próprios junto das entidades produtoras (OD’s).
Comprar créditos de exercício no mercado corresponderia, desta forma, a comprar uma permissão para baixos níveis de prática (BNP). O preço dessa permissão, negociado no mercado, seria necessariamente inferior ao da multa que o emissor deveria pagar ao fundo, poder público, pelos BNP. Para o emissor, portanto, comprar créditos de exercício no mercado significa, na prática, obter um desconto sobre a multa devida. Devemos olhar para as crises como oportunidades de crescermos pessoal e institucionalmente. Mesmo que não sejam estas as opções, algo pode e deve ser feito para salvar o desporto."

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