terça-feira, 4 de agosto de 2020

AS SENHORAS FUGIRAM ASSUSTADAS


"Em 1931, o Benfica conquistava o seu segundo Campeonato de Portugal consecutivo. Ano complicado, em guerras contínuas com os órgãos federativos, mas uma vitória inatacável frente ao FC Porto, no Campo do Arnado, em Coimbra, por 3-0.

Um Benfica - FC Porto não tem o peso de um Benfica - Sporting. Falta-lhe aquele cheiro a Lisboa que a Amália cantava, o cheiro a rosmaninho das procissões, das iscas com elas e a vinho das vielas mais escondidas, das rosas a florirem na tapada, enfim, cheiros de flores e de mar. Mas é, ainda assim, um momento de disputa intensa, estóica. Dói fundo a cada um que perde o peso da derrota.
No dia 28 de Junho de 1931, houve um Benfica - FC Porto em Coimbra: final do Campeonato de Portugal. Vitória encarnada por 3-0. Era um mês de Junho como este que vivemos, cheio de sol ardente, mas havia pessoas aos magotes como agora não há por via desse mal sinistro que nos entrou pela vida e nos deixou cada vez mais distantes uns dos outros. Um tempo ainda tranquilo, embora pela Europa já pairasse o insuportável fedor a pólvora de mais uma guerra que devoraria o planeta.
'Honra ao glorioso Benfica. Nunca este adjectivo teve tanta razão de ser como agora!', lia-se nas páginas de um periódico. Afinal, as águias defendiam o título conquistado um ano antes de demonstravam cabalmente que não tinham adversário à altura. 'Para trás, detractores! Afastem-se os mal-intencionados! Aqueles que passam a vida a dizer mal de um clube lá porque defendem outras cores. Neste ano, a competição máxima foi ganha pelo melhor grupo, pelo melhor de todos, pelo melhor que nela entrou'.


Se o jornalista presente no velho Campo do Arnado viu tudo decorrer na frente dos seus olhos, como negar a sua versão dos acontecimentos? Aliás, como recusar que, com uma vitória por 3-0, o Benfica tenha sido absolutamente superior ao seu rival da Invicta? Lá está! Para trás, detractores!
'Coimbra, uma fidalga terra acolhedora, que sabe receber as pessoas que a visitam, tinha ontem o aspecto dos dias de festa, de grande festa. Além dos comboios especiais que conduziram muita gente a todo o momento, de um lado e do outro, chegavam automóveis transportando desportistas. Viam-se bandeiras azuis e vermelhas por toda a parte. E por toda a parte se ouvia gritar: 'Viva o Benfica!' 'Viva o Porto!'


Já não se escreve assim por entre as páginas dos nossos jornais desportivos carregadas de erros de ortografia e de sintaxe. Há coisas que não voltam mais...



Superioridade total!
Nem sempre é vulgar, mas, enfim, das margens do Douro às margens do Mondego a distância é mais curta que a que dista o Tejo: havia mais adeptos do FC Porto do que do Benfica. E ouviram-se mais alto, mais pujantes. Pelo menos no início, antes de o jogo começar a correr ao contrário das suas vontades. O Campo do Arnado estava pela hora da morte. Bancadas de madeira improvisadas, ameaçando ruir quando os espectadores resolviam bater com os pés, senhoras assustadas fugindo, ignorando a peleja, com medo, um medo compreensível, natural.


O Benfica não tinha Pedro Silva, lesionado. Jogou João Correira, vindo directamente das terceiras categorias. E cumpriu!


O domínio dos vermelhos foi total. Do princípio ao fim. Vá lá, durante um pedacinho do segundo tempo, os azuis e brancos equilibraram a contenda. Mas insuficiente. Completamente insuficiente!
Aos 37 minutos, 1-0. Vítor Silva tem um remate poderoso, a bola bate num poste com tanta violência, que, em seguida, vai bater no do outro lado. Parecia um jogo de flippers. Com a felicidade que fez por merecer, Vítor Silva surge por entre os defesas contrários com rapidez e, tanquilo, executa e recarga como se tivesse tido ordens divinas para tal. O FC Porto treme. Está metido numa camisa de onze varas.


Em cima do intervalo, 2-0.
Canto. A bola vai na grande área, Siska sai com bravura, o embate com Emiliano Sampaio é inevitável. A bola sobra para Augusto Dinis, que, expedito, a chuta para as redes. Os portistas reclamam. O árbitro está a pouco mais de um metro do lance. Chama-se António Palhinhas. Considera que, sendo fora da pequena área, não há motivos para castigar o avançado benfiquista.
Os encarnados entram para o segundo tempo com uma confiança inabalável. Vítor Silva era verdadeiramente supimpa: com os seus recursos extraordinários, não havia nada que não conseguisse fazer. Foi o autor do terceiro golo.
65 minutos - à entrada da área, dribla um adversário de forma tão surpreendente, que o faz tombar. De imediato aplica um pontapé forte e colocado, indefensável para Siska - 3-0.
O resto do encontro será um passeio. O Benfica descansa sobre a vantagem larga, o FC Porto equilibra as forças por alguns momentos, mas nem Lopes Carneiro, nem Raul Castro, nem o inglês Norman Hall conseguem pôr em risco a baliza de Artur Dyson.
'Honra, portanto, ao clube que soube, defendendo um título que ostentava, contra tudo e todos, colocar bem alto a região mais categorizada do foot-ball português'. Pois: é que não foi qualquer um a assinar essas palavras. Foi Tavares da Silva, um dos maiores jornalistas de sempre em Portugal, no tempo em que o jornalismo não admitia o analfabetismo nem a ignorância, como agora..."

Afonso de Melo, in O Benfica

Sem comentários:

Enviar um comentário