segunda-feira, 5 de outubro de 2020

O “GYM” DE BOXE E A GESTÃO DO CAPITAL-CORPO



 O “gym” (termo consagrado em países de língua inglesa) é um espaço complexo e polissémico, carregado de funções e de representações que não fáceis de perceber e de interpretar para um observador pouco experimentado. Quando olhamos para uma sala de boxe, por exemplo, nada parece ser mais banal e evidente, mas Loïc Wacquant, professor universitário, num magnífico livro (Corps et âme: carnets ethnographiques d’un apprenti boxeur, 2000), dá-nos conta da sua complexidade em Woodlaw Boys Club, Chicago (EUA). Segundo Wacquant, o “gym” (clube, ginásio, sala) é uma força que forja o pugilista e o corpo-arma. É nele que se vão polir as habilidades técnicas e os saberes estratégicos. Ele isola da rua e tem um papel de segurança e de escape das pressões da vida quotidiana. É também uma escola de moralidade, no sentido de Émile Durkheim, isto é, uma máquina de fabricar o espírito de disciplina, a criação de laços sociais, o respeito dos outros e de si mesmo e a autonomia, coisas indispensáveis para a eclosão da vocação pugilista. Wacquant apresenta-nos um conjunto de dados etnográficos precisos e detalhados, produzidos pela observação direta e participante, sobre um universo social mal conhecido para muitos. O boxe (nobre arte) é como uma dança. É um dos terrenos onde se coloca com acuidade máxima o problema das relações entre a teoria e a prática, e também entre a linguagem e o corpo. O ensino de uma prática corporal, como já referi em muitos dos meus estudos, levanta um conjunto de questões teóricas de primeira importância, na medida em que as ciências sociais se esforçam por definir a teoria das condutas sociais que se produzem, na sua grande maioria, no subconsciente. O boxe é uma das práticas desportivas que tem inspirado muitos realizadores de cinema e romancistas de talento. Na nossa civilização, ele é um arcaísmo (do grego archaismós), uma das últimas barbáries consentidas, o último espelho. Enquanto “ilha” de estabilidade e de ordem, um “gym” pode ser um local de sociabilidade protegida. Os campeões demonstram “in vivo” as virtudes mais altas da profissão (coragem, força, tenacidade, inteligência e ferocidade) e encarnam as diversas formas de excelência pugilista. Até as conversas são muito ritualizadas, como acontece nos dojos das artes marciais. O boxe é um conjunto de técnicas no sentido de Marcel Mauss, isto é, atos tradicionais eficazes. Aprender a boxear é modificar o esquema corporal e a relação com o corpo. Interioriza-se uma série de disposições mentais e físicas, que fazem do organismo uma máquina (inteligente, criadora e capaz de se autorregular) de dar e receber golpes de punho. A nobre arte é paradoxal, na medida em que é ultra-individual, cuja aprendizagem é forçosamente coletiva. No fundo, o “gym” está para o boxe como uma igreja está para a religião: é uma comunidade moral, um sistema solidário de crenças e de práticas. O livro de Wacquant é uma referência para quem quer estudar e perceber o boxe.

Vítor Rosa: in a Bola

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