"“Não há desporto apolítico.” Ernst Bloch (1885-1977)
Existem os defensores da neutralidade política do desporto – que olhando para leis e regulamentos neles vêem plasmado que a política não se imiscui no desporto – e existem aqueles que, sendo mais pragmáticos, defendem que o desporto para além de depender da política se encontra refém desta.
Há aqueles que olhando para a história encaram os boicotes aos J. O. (1980, Moscovo e 1984, Los Angeles) como perfeitamente legítimos segundo a conjuntura política de então e que os próprios se obrigaram a cumprir… e que olhando para as actuais proibições ou sanções desportivas aplicadas aos desportistas da Rússia e da Bielorrússia (e repare-se que não referimos como proibições ou sanções aos respectivos países) pelas várias Federações Internacionais (FIFA E UEFA incluídas), COI e Comités Olímpicos Nacionais também as caucionam considerando-as lícitas, tendo em conta o actual contexto geopolítico e considerando que as mesmas são um alerta e uma forma de sensibilização internacional para causas sócio-políticas ou eventualmente para a resolução de conflitos bélicos sob a forma de pressão.
Em ambos os casos o desporto e os desportistas – os competidores – foram o instrumento da contestação, embora as duas situações não se comparem nem em natureza nem em grau. Transformou-se o desporto, com o consequente prejuízo dos desportistas, em arma de arremesso pedindo ao mesmo para solucionar questões cujas causas lhe são, ou eram, completamente alheias. Traduzindo, instrumentalizou-se o desporto através do boicote para realçar certas situações de confronto político dando mais visibilidade às mesmas e instrumentalizou-se o desporto usando-o na forma de sanção proibindo a participação de desportistas à espera que isso algo venha a resolver.
A intromissão da política no desporto (e não nos esqueçamos que o desporto é proveniente do livre associativismo) sempre se verificou a três níveis: um nível macro, que se reflecte na legislação oficial que abarca o mesmo; a um nível meso, na regulamentação proveniente das próprias instâncias que regulam o desporto (federações internacionais, nacionais, associações, clubes e até sindicatos de jogadores) – o desporto é talvez uma das actividades humanas mais regulamentadas e sujeita a um maior número de leis, embora o Direito não tenha muitos amigos no desporto, na opinião de José Manuel Meirim (1); e por último a um nível micro, como forma visível de manifestação por parte de desportistas e por parte do próprio público durante os variados eventos desportivos. Neste momento poderemos dizer que a política se intrometeu no desporto a um outro nível: o nível da instrumentalização do mesmo.
Houve os que concordaram com o boicote aos J. O. de Moscovo e houve os que concordaram com o boicote aos J. O. de Los Angeles… há os que concordam com as sanções aplicadas aos competidores da Rússia e da Bielorrússia e todavia também há os que discordam…
Fomos lestos a caucionar as sanções e proibições actualmente em vigor…
Em Fevereiro de 2022 a selecção ucraniana de esgrima desistiu da Taça do Mundo, no Cairo, para não defrontar a sua congénere russa. Uma opção dos próprios esgrimistas no momento em que se encontravam frente a frente com o adversário… o público presente foi lesto a aplaudir este comportamento (e até alguns dos rivais o saudaram) tal como nós próprios o fomos. No mês seguinte o presidente da federação sueca de basquetebol anunciou o afastamento do jogador Jonas Jerebko da selecção nacional da Suécia após este ter assinado, e por isso, um contrato com o clube russo CSKA Moscovo… e mais uma vez fomos lestos a aplaudir esta decisão… Repare-se na diferença entre as duas situações dada a circunstância (bélica) ser a mesma: a primeira é uma situação auto-imposta pelos próprios desportistas, a segunda é uma situação imposta por um órgão do poder.
No entanto fomos lestos a condenar o comportamento do judoca egípcio Islam El Shehaby, quando se recusou a cumprimentar o adversário Or Sasson, de nacionalidade israelita, nos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro, tal como fomos lestos a condenar o argelino Fethi Nourine quando abdicou dos J. O. de Tóquio para não defrontar o israelita Tohar Butbul, também na mesma modalidade.
Verificamos assim que nós próprios possuímos uma dualidade de critérios. E quem possui uma dualidade de critérios não pode, em verdade, julgar. Quem julga, por definição, tem de ser isento – mesmo não sendo, entretanto, neutro.
É sempre mais fácil, mais bonito e mais apelativo (e talvez mais lucrativo) agitar-se a bandeira do “o desporto constitui um instrumento de paz nas mãos da humanidade”, conforme fez Viviane Reding quando no final do século passado foi nomeada para a Comissão Europeia, sendo encarregada da educação, cultura, juventude, ‘media’ e desporto. No entanto, como nos diz Stefano Pivato (2), “o desporto não é somente um «jogo», mas um cenário onde se entrelaçam relações internacionais, interesses comerciais e relações políticas, e sobre o qual se apresentam os maiores perigos” – perigos do ponto de vista político e económico mas também perigos na óptica da manipulação de opiniões e da criação de crenças, acrescentaríamos nós.
A instrumentalização política do desporto foi definitivamente mais que confirmada quando o Comité Nacional Olímpico e Desportivo da França – o organizador dos próximos J. O. em 2024 – acabou por apelar ao público francês (3) que votasse em Emmanuel Macron na segunda volta das eleições presidenciais francesas… Encerremos o assunto e deixemo-nos de ilusões: já não restam dúvidas que se instrumentalizou politicamente o desporto e que o mesmo acabou por se transformar num terreno de lutas políticas!"
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