"Há um jogador veterano e muito antigo na seleção de Portugal, com uma carreira de sucesso iniciada no Sporting e depois prosseguida em Inglaterra e Itália, a quem o reconhecimento popular valeu ser perpetuado na terra natal com uma estátua vistosa, homenagem exemplar em vida, mas raríssima, quase única, a futebolistas que teimam em adiar a merecida reforma por limite de idade.
Leva mais de dez anos na seleção, ultrapassou a centena de internacionalizações, jogou todas as grandes competições, Europeus, Ligas das Nações e Mundiais, sempre disponível e influente, mas muitos já não lhe reconhecem capacidade para tirar o lugar a um jovem emergente.
Num plantel de 26 jogadores para uma competição de sete partidas em 28 dias, a oportunidade de jogar é tão escassa que acaba por dividir a equipa em titulares com ritmo, intensidade e motivação e em suplentes a quem as semanas sem jogo vão quebrando a forma e o espírito, reduzindo-lhes a competitividade para uma prova tão exigente.
Dos veteranos, inclusive, não se pode esperar que garantam o rendimento dos mais jovens, depois de terem perdido velocidade de execução e capacidade de regeneração física, com a autoridade do treinador desafiada a impor-lhes limites de utilização de forma a preservá-los para os desafios colectivos mais importantes que se seguem, sem atender aos caprichos de velha primadona, que podem constituir um traço de carácter dos jogadores com estátua.
Foi José Maria Pedroto que fez evoluir o nome e o perfil dos jogadores que se sentam no banco, transformando-os de “suplentes” em “reforços” - equiparando o status de cada um de forma mais adequada à imperceptível mas enorme transformação do jogo pela possibilidade atual de fazer o dobro das substituições e refrescar meia equipa.
Na última jornada da fase de grupos do Catar-2022, em que pela primeira vez nenhuma selecção conseguiu o pleno de vitórias, essas diferenças foram gritantes, com todas as qualificadas antecipadamente, França, Brasil e Portugal, derrotadas por terem decidido dar descanso aos titulares, revelando um fosso entre o nível dos que participaram nos primeiros jogos e o dos supostos “reforços”.
No caso de Portugal, à excepção de Diogo Dalot, nenhum dos substitutos chamados à liça justificou a entrada na equipa no jogo de terça-feira frente à Suíça, por falta de rotinas, de aplicação e de identidade, na folga dos jogadores-âncora. Deu até para perceber que a ementa anunciada na véspera por Pepe e pelo “chef” da FEMACOSA era, afinal, uma salada mal amanhada e pior temperada, nem carne, nem peixe.
Esta derrota que trouxe “muita tranquilidade” à vida de Paulo Bento, além de gerar uma inquietante dúvida metódica para os oitavos de final, é um banho de humildade para os jogadores envolvidos e para quem, por deriva da contaminação clubística, os apoia na contestação a um seleccionador que se foi colocando, ao longo de anos, em posição impopular, cada vez mais impopular, seja pelas escolhas, seja pelas estratégias, seja pelos esquemas financeiros que lhe permitem ser um prestador de serviços em regime de “outsourcing”, seja, acima de tudo, por não esconder preferências. Forte com os humildes e flagrantemente permissivo para os poderosos.
Imagino como seria tema para longas, profundas e tóxicas discussões se tivéssemos acesso a grandes planos da mímica que o tal jogador com estatuto e com estátua terá encenado, quando soube que ia ser substituído por um jovem com mais futuro: “Estavas com pressa para me tirar da equipa ou sou mesmo eu que já não rendo o suficiente?”
Imagino o esforço psicológico que esse veterano protagonista de tantas batalhas gloriosas terá realizado para engolir o desaforo e sentar-se humildemente no banco dos suplentes, sem protestar nem criar mau ambiente e ainda colocar-se na primeira linha de apoio aos colegas eleitos, mantendo-se fresco e alerta para ajudar a equipa, se necessário.
Se o tal jogador com estátua se chamasse Rui Patrício e tivesse sido perpetuado em bronze por um momento único da sua carreira, uma enorme defesa na final do Europeu de 2016 tão importante como o golo de Éder, e não por uma qualquer pose de modelo, teria moral para gritar, claro e em bom som, para o seleccionador ouvir de forma inequívoca, sem necessidade de tradutor gestual: “Leia nos meus lábios: temos pressa de ver ordem na casa”."
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