"Se pensarmos em Eusébio como um disco (“record”, no inglês) e em Cristiano Ronaldo como um cd, chegamos à metáfora de Neil Young sobre o choque entre gerações: “Steve Jobs foi o pioneiro da música digital, mas quando chegava a casa punha um disco de vinil”.
Kylian Mbappé, o fenómeno a quem ouvi ontem chamar de novo “pantera negra”, misto de Eusébio e Pelé, a tornar-se no melhor jogador da era digital, quebrou frente à Polónia o “último” recorde mundial do maior jogador português do século do vinil: por 198 dias, recebeu do moçambicano o testemunho de jogador mais jovem a marcar 9 golos num campeonato da FIFA, na interminável estafeta de procurar fazer melhor do que o percurso anterior.
Pronto, não há mais recordes de Eusébio para bater, concentremo-nos no trabalho de ganhar à Suíça, nem que seja com golos de André Silva ou de Seferovic na própria baliza.
“Terça-feira nem pensar, tenho jogo”, diria o próprio Eusébio, se estivesse entre nós, com 80 anos, e lhe quiséssemos agendar uma entrevista para debater este momentoso assunto, que pudesse desviar, por minutos que fosse, a atenção focada no transcendental confronto de Doha. Além de logo ter matado a polémica, desejando que Cristiano Ronaldo marcasse os golos que faltam para chegar ao título que ele e todos os portugueses acham merecer desde 1966.
Ao futebol, desporto canibal que seca o mediatismo a todas as modalidades desportivas, só faltava esta febre dos recordes que acomete alguns solistas excêntricos que procuram distanciar-se dos artistas comuns que lhes carregam o piano em cada espetáculo.
O “Guiness Book of Records” descobriu o filão há alguns anos e desenvolveu uma categoria autónoma sobre futebol, em parte ancorada na figura de Cristiano Ronaldo, um papa-recordes insaciável, que já forrou uma parede com os diplomas encaixilhados das suas proezas e que tem suficiente tracção mediática, à escala mundial, para concentrar atenções nesta marginalidade, abrindo-lhe mais uma frente de negócio.
Do máximo de golos numa época de Champions à personalidade com mais seguidores nas redes sociais, passando pelos ‘hat tricks’ na Liga espanhola e acabando nos golos em partidas de seleções e em Europeus, Cristiano Ronaldo já detém o recorde dos recordes reconhecidos pelo “Guiness”, que o condecorou até pelo “rating” mais alto (99%) no jogo eletrónico FIFA 18.
Ele é o “serial killer” dos recordes do futebol.
A par do incremento das estatísticas minuciosas, da cultura dos jogos electrónicos, do apetite voraz por novos “conteúdos” de media social e da diversidade e pressão dos patrocinadores, desenvolveu-se esta indústria efémera do recorde, por pouco e por nada, ridícula e vazia de romantismo como um iPod.
Os americanos chamam-lhe “hype”, abreviatura de “hyperbole”: expressão exagerada de forma dramática para potenciar campanhas publicitárias ou ações de marketing impactantes. É isto a pirexia do recorde que tem arrastado Cristiano Ronaldo para situações ridículas a cada jogo que passa, em contraste com o registo imorredouro do desportivismo romanesco que Eusébio deu ao mundo em 1966. Recorde, o anglicismo que deriva de “record” (registo), evoluiu na linguagem universal para “façanha desportiva registada oficialmente, que consiste na ultrapassagem de tudo quanto se fez no género”, um conceito factual sem margem para discussões que, todavia, não apaga nem diminui o valor dos pioneiros. Émile Berliner também foi o inventor dos “records” de 78 rotações, mas é a Thomas Edison que devemos o fonógrafo.
Ora, o sensacional registo de 9 golos de Eusébio em apenas um Mundial (1966) é um recorde nacional que nunca será batido. Tal como acontece a nível mundial com os 13 golos de Juste Fontaine em 1958 - apesar de Miroslav Klose e Ronaldo “Fenómeno”, o outro Ronaldo simples e bonacheirão brasileiro, terem superado esse número em vários campeonatos posteriores.
Meti-me nesta embrulhada de estabelecer o recorde do artigo com mais “recorde” escritos, porque uma das palavras da minha vida é “Record”, nome de jornal de futebol criado por gente do Atletismo, a modalidade dos recordistas eternos, como Jesse Owens, Carl Lewis ou Serguey Bubka, cujo lema foi sempre procurar ser melhor do que a concorrência.
Afinal, também detenho o recorde do “Record”, com seis entradas (e saídas), ao longo de 35 anos, de aprendiz a diretor. Acho que nem o Cristiano Ronaldo consegue bater isso."
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