"Acreditar que D. Sebastião podia assomar ao alto da Serra dos Candeeiros, impante e Vitorioso no seu garanhão branco, era um dos devaneios da minha infância, inspirado pelos cânones negacionistas do regime, naquelas manhãs de geada, neblina e poças de água, a caminho da escola primária.
Muitos anos depois, o futebol e a profissão possibilitaram-me trabalhar intensivamente em Marrocos durante mais de um ano. Uma oportunidade única de conhecer a História, pelo lado do inimigo. Foi há 20 anos, mas lembro-me exactamente onde estava e com quem, os meus amigos Youssef e M’ahmed, ao serão em Agadir, quando tomei consciência da narrativa absurda que nos foi ensinada sobre esse episódio trágico e marcante para Portugal e para o Mundo. Eles chamavam-lhe a “Batalha dos Três Reis” e demoraram algum tempo a perceber o que queria dizer o meu “Alcácer Quibir” que, na verdade, era o original Ksar el-Kebir, que devíamos ter traduzido literalmente por “Grande Castelo”, ali perto do Wadi al-Makhazin, um vale à prova de invasores, onde tudo se passou - para que o trauma da derrota não fosse tão grande e perene.
E que, embora armados com artilharia pesada, os portugueses aliados às tropas mouras do Sultão caído em desgraça, Abdallah Al-Mutawakil, não chegavam a metade dos mais de 50.000 soldados do terceiro Rei, o Sultão Abd al-Malik. Foi pela voz dos amigos marroquinos que finalmente matei o Sebastião da minha genética cultural, por solidariedade alheia, ao tomar consciência que também os dois Reis muçulmanos desavindos tinham morrido na carnificina desse 4 de Agosto de 1578, da qual ninguém saiu ileso.
Mais de 400 anos depois, incluindo banhos e passeios prazenteiros nas praias onde Sebastião e as suas tropas em fuga se afogaram dramaticamente, conheci um país extraordinário.
Do azul da costa mediterrânea de Tânger ao branco dos picos nevados do Atlas, passando pelas tinturarias de Fez, pelo ocre de Marraquexe ou pelos cenários épicos de Ouarzazate, a porta do Sahara, do nascer do sol ao som dos minaretes a chamar para o primeiro “Salah” e do frenesim das manhãs no meio do trânsito dos burros de carga nas medinas sobrelotadas das cidades imperiais, à sensualidade das dançarinas do ventre nas noites dos riades, e absorvendo, sempre que pude, a inspiração contemplativa do silêncio do palmeiral de La Mamounia, o palácio que preserva intacta a suite de Churchill com a mesma abertura multicultural com que se lê um jornal europeu e se come ‘croissants’ pela manhã em Casablanca.
Adoro Marrocos e sei que os marroquinos adoram Portugal e os portugueses - não entendo como não existe uma ponte política, social e económica, sem barreiras nem portagens, entre as duas margens deste rio salgado que nos separa. Adoro futebol e aprendi que nenhum povo gosta mais de futebol do que o marroquino, pelo que também fui derrotado junto com as “tropas” do Rei Mohammed VI na batalha de Zurique em que o conluio da FIFA atribuiu o Mundial de 2010 à África do Sul.
Hoje voltamos a encontrar-nos num mar de areia, árido e truculento, precisando de deixar em casa a arrogância sobranceira dos eternos Sebastiões que habitam em nós.
Como diz o fidalgo da FEMACOSA, a selecção de Marrocos é fortíssima, determinada e organizada como o exército de Al-Malik, que atacava pelos flancos com uma cavalaria de puros-sangues, os Hakimi e os Ziyech pela direita, os Mazzraoui e os Boufal pela esquerda, para ganhar o domínio do centro da batalha. E com a firmeza dos Bono, a combatividade dos Amrabat e a inclemência dos En-Nesyri desbaratava a admirada táctica do quadrado, espécie de tiki-taka dos torneios ibéricos, engendrada por Mister Álvares Pereira, 200 anos antes. “O Desejado" cavalgou ao encontro de uma morte inglória, treslouco pelo cristianismo assanhado e miragens de glória a clamar “Sebastião, Sebastião, Sebastião”. Não nos inebriemos se, às tantas, ouvirmos a multidão de árabes e berberes no estádio do Catar também chamar o capitão-mor das tropas lusas, “Cristiano, Cristiano, Cristiano”.
Será apenas um enganador salamaleque colectivo, o canto das sereias do deserto. Fazem-no com a sabedoria negocial com que nos impingem marroquinaria nos “souks” da praça Jemaa el-Fna, dos encantadores de serpentes, pelo triplo do valor real. Ou com a desfaçatez com que em 1986 endrominaram o ingénuo Bom Gigante, José Torres, atormentado pelas patetices de Saltillo, tal como o selecionador tem andado assoberbado pelas tolices de Doha.
Se de Alcácer Quibir saiu um novo Sultão, Aḥmad al-Manṣūr (Aḥmad, o Vitorioso), que se cumpra o destino, meio messiânico, meio sebastiânico, de sair da batalha de Al-Thumama, contra todo o mundo árabe reunido em apoio de Marrocos, um novo Rei, Amado Portugal, o Vitorioso.
Oxalá!"
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