"Fizeram a cabeça ao Enzo
Quando vi Enzo Fernandez de cabelo platinado nos festejos do título mundial, assaltou-me a sensação de que vinha aí muita tinta para escorrer nas lavagens mediáticas.
Convicto da relação direta entre o cabeleireiro e os palcos desportivos, entre o “look” e o comportamento das “pop stars” da bola, o instinto da experiência dizia-me que a “síndrome Rodman” tinha feito mais um refém.
A sério.
Vivi o tempo dos “beatles” à George Best, dos ”hippies” à Cruyff, das bigodaças à Chalana, das carapinhas à Valderrama, dos “codinos” à Baggio, da elegância à Beckham, do “não sei que fenómeno me passou pela cabeça” à Ronaldo de 2002, dos moicanos à Neymar, das cristas à Vidal, enfim, sem esquecer das clássicas cabeças rapadas à Michael Jordan. As tendências da moda desfilam nos relvados como assinatura gráfica dos grandes estilistas.
Já o grande atleta Sansão dizia: “quem mexe com o meu cabelo mexe com a minha força”.
A cadeira do “coiffeur” é o divã do psicólogo desportivo dos nossos dias. Sou amigo de um profissional do ramo que acudia a emergências de pente e tesoura aos estágios da seleção e ainda hoje atende aos caprichos de clientes de frisados, tranças e degradês: só vos digo que a Netflix teria naquele salão de confidências matéria para várias temporadas.
Sobre a surpreendente mudança de humor de Enzo Fernandez, baptizado com o nome de um sempre impecável penteadinho, Enzo Francescoli, “el Príncipe”, gostava de saber a opinião de outro ídolo maior do River Plate, o único argentino bicampeão mundial, que levava esta questão capilar muito a sério, Daniel Passarella. Colega de Mário Kempes, “el Pelotudo”, e capitão de Diego Maradona, o discípulo fiel dos barbudos de Cuba, Passarella trouxe o tema para a ordem do dia quando ao comando da seleção celeste decidiu deixar Caniggia e Redondo de fora do Mundial de França por se recusarem a aparar pontas e melenas, ao contrário do que aceitou, in-extremis, “el muñeco” Gallardo, também ameaçado de ser cortado da seleção de 1998 pela fátua capilar - e, curiosamente, o último mentor de Enzo Fernandez no grande clube de Buenos Aires.
Nos meus anos de andanças pela NBA, li e ouvi debates, considerações, análises e sentenças sobre a tal “síndrome Rodman”, que terá sido o primeiro desportista a ousar aparecer em campo com o cabelo a berrar de roxo, amarelo ou violeta, às riscas ou às bolas, consoante lhe dava na cabeça.
Diziam que Dennis era maluco, aceitavam-lhe a excentricidade porque não havia defensor melhor na história do jogo, tiravam o máximo partido desportivo do seu temperamento de porco-espinho quando lhe passavam a mão pelo pêlo, mais tarde retratado na biografia “Bad as I wanna be”, e prepararam-se para o pior no dia em que apareceu de vestido e penteado de noiva para anunciar que se casara consigo próprio. É escusado dizer onde e como está hoje um dos melhores basquetebolistas de todos os tempos e amigo de Kim Jong-un, o ditador que impõe o corte à tigela a todos os norte-coreanos.
Talvez o desfoco da imagem de Enzo Fernandez aos olhos dos benfiquistas seja mera coincidência e aquilo não passe de uma promessa ao seu padroeiro San Martin, o “santo da espada”, Libertador dos argentinos: pinto o cabelo se ganhar, corto o bigode se perder, faço madeixas se for campeão.
Quem tem vagar faz caracóis.
Mas algo me diz que ao Enzo Fernandez fizeram-lhe a cabeça, para grande decepção da massa associativa, que só queriam vê-lo de cabelo pintado no desfile do Marquês, lá para o fim da primavera, quando os cortes dão mais força às raízes."
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