"O desporto moderno resulta de um processo de longo prazo, ligado à pacificação dos confrontos populares, ele mesmo ligado à monopolização da violência física pelo Estado e pela interiorização progressiva destes constrangimentos pelos indivíduos. Com a especificação progressiva dos tempos desportivos (calendários), opera-se uma convocação mais estrita dos espaços, que tendem a “cortar” o desporto da organização da vida quotidiana. O desporto corresponde a um renascimento inesperado das formas primitivas das mentalidades nas sociedades desenvolvidas. Ele tornou-se um dos maiores símbolos da atualidade.
Mais do que a desigualdade orquestrada pelos modos de organização das competições desportivas ou das que resultam da grande disparidade dos recursos financeiros dos competidores, a dopagem coloca a questão da desigualdade física e psicológica entre os desportistas. Ela toca a essência da atividade, a igualdade corporal, que abrange principalmente a prática desportiva. Atentar contra o princípio da pureza do corpo, é colocar em causa o objetivo primeiro da prática desportiva. Como registar o progresso do corpo humano se ele apresenta modificações com o apoio de recursos externos? A legitimidade de uma tal situação coloca em causa o quadro ético e moral, no qual o desporto se inscreve. Com a alteração da noção de corporeidade, como dado puro e imutável, a dopagem leva a uma nova apreensão do corpo, concebido como suporte modificável, modulável e experimental.
Como toda a prática “desviante”, a questão da dopagem coloca às ciências sociais dificuldades acrescidas, cujos fundamentos teóricos, epistemológicos e práticos constituem um verdadeiro desafio. Basta, para isso, recensear a fraqueza dos métodos habituais mobilizados pelo sociólogo para apreender as práticas sociais (entrevistas, inquérito por questionário, observação. No caso do atleta, a apreensão da dopagem passa, essencialmente, pelo corpo (produto injetado, absorvido, consumido, etc.). O corpo passa a ser o “testemunho”."
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