Na análise ao plantel que aqui publiquei há um par de semanas, deixei notas positivas sobre alguns dos elementos com maior presença no onze-tipo, mas também algumas lacunas que saltavam à vista, representativas de dois pólos que definiram aquele estranho eclipse conhecido como Rogerball: a falta de desequilibradores e uma potencial falta de equilíbrio no meio campo. A avaliação destas duas dimensões foi feita na expectativa de que, algures na estrutura do futebol e na liderança do clube, existisse discernimento suficiente para compreender a época que se avizinha, seja pelo risco que representa para uma direção inoperante que decidiu patrocinar a continuidade de um treinador de aptidão muito duvidosa, seja pela qualidade essencial que deve caracterizar qualquer arranque de época do Benfica. Há um dever de conferir esperança neste momento. Por muito que a incompetência abunde, por muito que ninguém saiba bem o que esperar desta equipa ou de quem ali toma decisões, há, ainda assim, mínimos que são esperados. Esses mínimos estiveram muito longe de ser cumpridos no primeiro jogo oficial da época.
Não me lembro de um começo tão fraco numa equipa do Benfica. Comecemos pelas coisas positivas a retirar deste jogo. Apesar da pobreza evidenciada, a derrota em Famalicão vale objetivamente apenas três pontos. Há todo um campeonato pela frente e a esperança de corrigir a falsa partida. Acresce a isso um outro facto, se quisermos, animador: perante tantas fragilidades defensivas e ofensivas, perante a falta de atitude e de rasgo, perante a falta de vontade apresentada, condizente com a da equipa que se arrastou penosamente no final da época passada, registo, com o entusiasmo possível, que esta equipa só pode mesmo melhorar a partir daqui. É isso que se espera que aconteça já a partir do próximo jogo. Não há nada que possa justificar uma repetição da exibição de domingo.
Agora as más notícias. Para que a exibição de domingo não se repita, é preciso compreender o que se passou. Ora, o treinador do Benfica apareceu na flash interview com a mesma desorientação e falta de ideias da equipa montada pelo próprio. Nas suas primeiras palavras em jogos a doer, explicou, com a simplicidade irritante que o caracteriza, que não sabe explicar o que se passou. Não me interpretem mal. Eu até prefiro que as pessoas me digam a verdade, mas às vezes é preciso o mais elementar bom senso para compreender quando se deve ser político a responder a uma pergunta. Roger Schmidt fez o contrário disso, porque é assim ou porque não está para se chatear. Ao ser fiel na comunicação à incompetência tática demonstrada, conseguiu entrar no campeonato somando uma derrota verbal à derrota copiosa dentro de campo. Nada mais longínquo da tal esperança que este momento deveria permitir acalentar. Perante a expectativa de um novo começo que no seu caso é mesmo o último, Roger Schmidt mostrou exatamente aquilo que tem sido na sua já penosamente longa passagem pelo Benfica: um homem sem um plano à medida da ambição do clube. Foi este o homem a quem foi dado um voto de confiança há poucos meses. Às vezes é preciso apenas escrever as coisas num papel para constatar o absurdo em que nos encontramos.
Mas, se Roger Schmidt é hoje uma sombra da confiança que devia ser capaz de projetar em nós, está longe de ser o único responsável. Não foi, seguramente, Roger Schmidt quem decidiu que o plano para atacar esta época passa por chegar a 12 de agosto com um plantel ao qual faltam Neves, Neres e Rafa. Falta isso, faltam laterais, falta meio campo, falta um guarda redes suplente, falta aquilo que o adepto vulgar se habituou a reconhecer como espinha dorsal de uma equipa campeã e competitiva onde quer que se apresente. Só não falta dinheiro, essa enorme fonte de felicidade que tão poucos títulos dá a este clube. Sobrou Di Maria — pago ao peso de ouro que não permitiu apresentar uma proposta melhor a João Neves — como o único elemento capaz de, no contexto adverso em que o Benfica opera, garantir alguma senioridade, algum rasgo, alguma capacidade de dar ao Benfica simultaneamente capacidade de desbloquear jogos individualmente e capacidade de olear uma manobra coletiva para que a bola chegue em condições a um avançado de excelência — Pavlidis — que pareceu um homem deixado sozinho em alto mar, como outros avançados queimados pela máquina de insucessos desportivos que tem sido este Benfica. Não é preciso ser especialista em análise estatística do jogo. É muito simples, aliás. Nos últimos meses, a equipa do Benfica perdeu dezenas de soluções ofensivas que resolveram dezenas de jogos. Para o seu lugar, temos Roger Schmidt e um conjunto de jogadores que deixaram o alemão muito confiante nas últimas semanas, mas que ao primeiro embate pareceram ser um coletivo capaz de tornar Schmidt ainda mais danoso para o presente e futuro do clube. Em termos de plantel, sejamos rigorosos: existe talento, mas as alternativas credíveis, de impacto imediato, não existem. O que tem o treinador a dizer sobre isso, para além de não saber explicar o que se passou? Apresentou um meio campo a quatro que parece destinado a conquistas no andebol, tal foi a capacidade prodigiosa de fazer circular a bola para trás e para o lado durante 90 minutos. E apresentou uma defesa sem qualquer semblante de rotina, uma defesa que não se apresenta num onze do Benfica.
É aqui que estamos e é daqui que temos de sair urgentemente. O que pode o Benfica fazer em agosto para reforçar o plantel e apetrechá-lo? As lacunas resolvem-se com aqueles que cá estão? Se sim, o que falta a Schmidt para procurar montar um onze que permita aos laterais aparecer de forma eficaz em zonas ofensivas e manter o equilíbrio atrás? E como fazê-lo sem extremos de raiz, sem passadores de bola que permitam progredir rapidamente no terreno, sem maestros que permitam esticar o jogo de forma competente, ou sem unidades que ofereçam garantias na transição entre o ataque e a defesa? Faltam jogadores, mas, acima de tudo, o mais preocupante é que parece faltar competência para tirar melhor partido de quem está. Faltará provavelmente confiança nos que cá estão, apesar de nos terem prometido que esta época todos os erros seriam «certamente corrigidos».
Se o leitor considerar que esta avaliação é excessivamente dura e que se jogaram apenas 90 minutos, permita-me que lhe diga duas coisas. A primeira é que isto não é o Carcavelinhos. A exigência deve ser máxima. O Benfica não tem tempo nem pontos a perder. E toda a gente no clube tem obrigação de saber no que se alistou. Em segundo lugar, as semanas de preparação da equipa serviam, em tese, para chegar a 11 de agosto e levar à frente quem aparecer, seja quem for. Se os jogadores chegam a esta fase e ainda não sabem o que fazer em campo, como aliás foi notado durante o jogo, estamos perante uma situação alarmante. Mas tudo isto suscita uma preocupação adicional: perante a incapacidade de Schmidt e da estrutura para, até aqui, potenciar rapidamente os muitos milhões investidos em impacto imediato produzido dentro de um relvado, então o que levará a crer que isso vai acontecer nos próximos dias ou semanas?
Roger Schmidt é um homem em liberdade condicional que parece inclinado a reincidir no crime, assim como são os seus cúmplices, a quem se exige que demonstrem de uma vez por todas que reúnem condições para dar ao Benfica um projeto à altura do clube. Não espero que os gigantescos problemas estruturais se resolvam de um dia para o outro, nem acho que esses tenham solução quando se mantém tudo e todos como estão e sempre estiveram, mas seria bom não acrescentar mais desnorte à desorientação há muito instalada. Sejamos práticos. O que mais preocupa é o dia seguinte, a reação à perda, a segunda bola. Quantos de nós acreditam que Rui Costa, a sua direção e Roger Schmidt têm aquilo que é preciso para contrariar a tendência da época passada, agora tão rapidamente reafirmada?
A indefinição é quase total e eu arrisco dizer que isso tem uma origem fatal. Aos sócios do Benfica pede-se muita coisa, mas também nos compete avaliar, de preferência com respeito por todos os envolvidos, incluindo o respeito pela inteligência de quem avalia. Quando hoje olho para Rui Costa, vejo um presidente vagamente perdido, um olhar rumo ao infinito e a coisa nenhuma, mas vejo também aquilo que transparece em toda a conduta da direção do clube, das pequenas às grandes coisas. Uma auditoria nunca é só uma auditoria. Uma revisão de estatutos nunca é só uma revisão de estatutos. Cada tarefa de elevada responsabilidade que é confiada a líderes de grandes organizações tenderá a mostrar exatamente de que fibra é feita a liderança, que equipas acompanham essa liderança, e que capacidade têm. Há um estranho paralelismo entre a ética de trabalho apresentada em Famalicão e a ética de trabalho deste presidente do Benfica, como a de quem o acompanha nesse trabalho de enorme responsabilidade e exigência. Mas é mais grave do que isso. Quando falta a capacidade, há sempre quem faça das tripas coração para compensar o dom que não tem. Quando assim é, o comum mortal tende a reconhecer essa abnegação, que no caso de um clube de futebol pode decorrer do simples facto de haver ali um conjunto de pessoas que ama o clube e se desunha para o tornar maior, nem que morra a tentar. Nada disso é observável na realidade do Benfica hoje. Um presidente eleito mais com base no seu benfiquismo do que na competência parece hoje alguém que nem no Benfiquismo se distingue. Na vida, é preciso querer muito as coisas para se ter uma chance de chegar a resultados extraordinários. É preciso aparecer para trabalhar, dia sim dia sim, e resolver os problemas, um de cada vez, até que os músculos se tornam mais fortes, o intransponível se torna apenas difícil, e aquilo que antes parecia hercúleo se torna a única forma de estar conhecida pelos que fazem parte da missão. É esta a excelência a que o clube deve aspirar. É isso que deve caracterizar quem lá está. Alguém consegue honestamente afirmar que o Benfica é hoje liderado e gerido por gente capaz de dar tudo isto pelo clube?
Num clube de futebol, a preocupação com a conquista do poder e a sua perpetuação obrigam a uma demonstração de sentimentos que distingue o futebol de um território parecido como é o da política. Não basta um grupo de pessoas existir dissociado dos sócios. É preciso conquistá-los diariamente, demonstrar que a nação Benfiquista não é uma abstração, mas um desígnio para o qual todas as nossas ações convergem. Desengane-se quem acha que isto é um lirismo. Isto é, apenas e só, reconhecer que a grandeza do Benfica deu muito trabalho a muita gente e que é preciso trabalhar muito mais do que se trabalha hoje para perpetuar a grandeza, e não apenas o poder de uns quantos há demasiado tempo instalados no clube.
É assustador que sejamos cada vez mais preocupados com tudo isto, não apenas com exibições medíocres em Famalicão mas com a doença alargada e metastática que afeta o clube, mas é muito importante que assim seja. Não há filhos pródigos intocáveis nem vacas sagradas. Não há culpados que se limitam a pagar as quotas e apoiar o seu clube, nem há inocentes quando esses trabalham há quase 20 anos no clube e não o conseguem afirmar. Todos os que fazem parte do problema merecem ser tratados como os adultos que são e os ocupantes dos cargos que devem desempenhar. À falta de melhor desenvolvimento, à falta de sinais de qualquer esperança numa mudança maior operada pelos que estão hoje no clube, que pelo menos se consigam organizar para pôr a equipa a jogar um pouco mais à bola e a ser mais competente. Não envergonhem o clube. É o mínimo que se exige numa primeira quinzena de agosto, mesmo que a sabedoria popular nos tenha ensinado que o que nasce torto tarde ou nunca se endireita.
Vasco Mendonça, in a Bola
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