sexta-feira, 27 de setembro de 2013

O DESPORTO EM QUE EU ACREDITO

Manuel Sérgio (foto ASF)


professor catedrático da Faculdade de Motricidade Humana e provedor para a Ética no Desporto

Também concorre ao aperfeiçoamento das características físico-motoras de todas as idades e de cada um dos sexos. Nada esquece na motricidade humana, sob o ponto de vista articular, muscular, funcional. Pretende dar ao praticante força, velocidade, “endurance”, resistência, impulsão, coordenação, etc., etc. No entanto, não se limita a fazer “bestas esplêndidas”, ou mesmo “animais racionais”, com uma impecável condição física. É mais ambicioso: quer ser um factor de enriquecimento da sociedade e da cultura, porque reivindica desenvolvimento para todos; porque aposta na formação permanente dos cidadãos, com equidade absoluta; porque se afasta do “panem et circenses” das turbas massificadas e quer ser um meio de o ser humano se exercitar no exercício da liberdade e da solidariedade. No meu modesto entender, o direito de igualdade de tratamento, no acesso à formação e à educação, motoras, deve ter prioridade sobre o direito ao desporto altamente competitivo.

O Desporto em que eu acredito não é mera educação física, entendida como educação de físicos, mas motricidade humana, ou seja, movimento intencional da pessoa visando, em grupo (em equipa) a transcendência (ou a superação) - não é por isso contra o espectáculo desportivo, mas só acredita nele quando, numa sociedade, a um campeão do Desporto corresponder um campeão das Artes, das Letras e da Tecnociência. Por isso, rejeita e condena o espectáculo desportivo de todas as ditaduras (incluindo a ditadura do Lucro, ou de um economicismo sem freios), que serve, única e exclusivamente, para adormecer as pessoas à recusa da sociedade injusta estabelecida. O Desporto em que eu acredito decorre naturalmente dos Direitos do Homem e assinala mesmo que o Desporto só dá saúde numa sociedade onde tudo seja para todos! A um praticante, com fome (um exemplo) o Desporto faz mal à saúde! A um praticante, sem formação moral, o Desporto pode transformar-se num espaço de violência e de corrupção! É preciso fundamentar a promoção do desporto na construção de uma democracia económica, social, cultural, em poucas palavras: de uma democracia participativa! Antes do Espetáculo Desportivo, há muita coisa a fazer...

Este é o Desporto em que eu acredito: pretende ser educação, lazer, saúde, reabilitação, alto rendimento. Mas acredita firmemente que tem uma função social e política. Ele sabe que os regimes fundamentalistas, autocráticos e a sociedade saturada dos mais instantes objetivos do economicismo não trabalham em prol do Desporto, mas servem-se dele como mais um meio, e poderoso, de alienação e exploração do povo. Com efeito, quando na boca dos marginais (não há marginais, há marginalizados pela sociedade injusta) os resultados desportivos, designadamente os do futebol, parecem mais importantes do que a miséria (material e moral) e a injustiça social – é evidente que o Desporto, nesse País, tem uma função: esconder aos olhos dos pobres os caminhos da liberdade e da solidariedade!

Este é o Desporto em que eu acredito. Para ele, vale mais uma lágrima humana do que todos os campeonatos e taças do mundo. Ele não se ocupa só do estudo dos meios, esquecendo os fins, e por isso não tem por si as letras grandes das páginas dos jornais, nem os noticiários mais escutados da rádio e da televisão, nem as redes de mundialização mediática. É observado, com um olhar lateral e suspeitoso, pelos “novos poderes” que dominam o mundo. Mas tudo considera instrumental em relação ao ser humano! Tudo! Para mim, o desporto é sempre uma berrante mentira, quando nele o Homem não é fim, é simples meio!

Como Provedor da Ética no Desporto, cabe-me dizer a que venho. Se há coisa que o Desporto necessita, na hora que passa, é de que haja quem lhe fale claro, com seriedade e firmeza. Ora, o Desporto Moderno nasce, na primeira metade do século XIX, na Inglaterra vitoriana, como fautor e fator de valores, designadamente os pedagógicos. O cónego Thomas Arnold, em 1828 nomeado diretor do Colégio de Rugby, é o grande anunciador deste novo conceito de Desporto, já que, para ele, “un idéal moral nést servi que par des hommes forts et courageux” (Jacques Ulmann, De la Gymnastique aux Sports Modernes, Vrin, Paris, 1977, p. 327). Portanto, a Ética está na raiz do nascimento do Desporto – que é afinal o fenómeno cultural de maior magia no mundo contemporâneo! É quase uma redundância dizer-se que o Desporto deve ser Ético, porque sem Ética não há Desporto. Pierre de Coubertin assim o entendeu também, ao lutar por um Desporto que unisse, num abraço de compreensão e de tolerância e de fraternidade, o mundo todo.

Do que venho de escrever se infere que o Desporto não é para mim uma simples Atividade Física, mas uma Atividade Humana, porque é um Homem e não só um Físico que faz Desporto. O dualismo antropológico cartesiano parece ainda poder localizar-se em muitas aulas de Educação Física escolar e até no treino da alta competição desportiva, com uma preparação física desinserida da globalidade do treino. Paco Seirulo, treinador adjunto do Barcelona, desde a mítica época de Johan Cruyff, não tem dúvidas: “La preparación física no existe (…). Además, los ejercícios físicos en el fútbol deben ser siempre con balón” (Marca, 24 de Novembro de 2007). Assim, se ao provedor compete “apresentar recomendações e sugestões ao Governo e aos diferentes agentes desportivos”, julgo dever propor-se às universidades que a Ética seja uma disciplina das licenciaturas em Desporto, para que os futuros professores de Desporto e Educação Física façam da Ética um dos seus temas favoritos, mormente nas suas aulas no Ensino Básico e Secundário. Sem Ética, não há Desporto: esta é uma verdade que se forja no exercício e na fidelidade a valores.

Não pode esperar-se dos cultivadores de um clubismo ou regionalismo doentios, nem de nefastos manipuladores da opinião pública, que reconheçam na Ética lugar imprescindível, na prática desportiva. Os nossos jovens têm direito a este banho de verdade, que deve abranger todo o sistema educativo nacional: Sem Ética, não há Desporto. E os professores de Educação Física e Desporto, na Escola, devem ser os primeiros a não deixar minar um conceito humanizante de Desporto. Aguardamos que as universidade se mostrem sensíveis à nossa proposta, ao mesmo tempo que sugerimos, organizado por esta Secretaria de Estado, um seminário subordinado ao tema: “Ética e Desporto” e aberto a licenciados e licenciandos em Educação Física e Desporto, a treinadores desportivos e outros “agentes do desporto”. O Desporto pede vigilantes de consciência, que não deixem cerrar o horizonte às palavras essenciais. O Desporto depende muito dos lúcidos que resistem ao saber massificado. O Desporto em que eu acredito depende muito de uma constante vontade de consciência.

Afinal, nesta minha mensagem de Provedor da Ética no Desporto, o que eu pretendo salientar, em resumo, é a urgência de levarmos as questões até ao fim, ou seja, de fazermos do Desporto, seja ele educação, saúde, lazer ou espetáculo, uma expressão do que mais digno existe na comunidade humana.

artigo de Manuel Sérgi1: jornalabola

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