sexta-feira, 3 de fevereiro de 2017

LÁ EM CASA MANDO EU


Para ganhar, o Benfica tem de matar a alegria e sentir-se miserável.
Manuel Neves, o outro lado do Lá em Casa Mando Eu, escreve um texto sobre o clube do qual é adepto, perdão, sócio, perdão, fanático. Voçês já vão perceber.
“For alarmingly large chunks of an average day, I am a moron.” - Nick Hornby, Fever Pitch
Tenho vergonha de confessar isso, mas adormeço sempre bem, excepto quando o Benfica perde. A minha mulher goza-me, fica espantada com a minha capacidade de demorar dez segundos do beijo de boa noite ao ressonar, mas sou assim. Excepto quando o Benfica não ganha. Aí, deito-me irritado, fico a olhar para o tecto a rever jogadas mentalmente, a imaginar outras combinações, a sonhar acordado com jogadas que dariam golo.
Para irritação da pessoa que dorme comigo, adormeço bem mesmo se o meu filho não tem a roupa pronta para amanhã ou se não há fruta para a sobremesa dele. Mas quando o Benfica não ganha, fico a analisar os erros, os movimentos, as saídas de bola que não correm bem, a péssima forma física do Pizzi, o desastre que é o Lindelöf com cabelo e a central esquerdo, o ridículo de não termos comprado um número 8 desde a saída do Renato.
Depois, adormeço e acordo a meio da noite, com a vã esperança de que tudo foi um sonho e que hoje é madrugada de domingo para segunda e o Benfica só joga à noite – até perceber que são mesmo 4 da manhã de segunda-feira, o meu filho está a chorar e eu estou irritado porque o Benfica não ganhou.
Peço desculpa, não me apresentei. O meu nome é Manuel Neves e sou adepto do Benfica. Não tenho nenhuma função no clube, para além do meu lugar anual, e vivo obcecado com que o Benfica ganhe. Todo o tempo em que a minha cabeça não tem que estar a pensar nos mínimos olímpicos para a manutenção da minha vida profissional e familiar, estou a pensar no meu clube. Sem parar. E em dias como o de segunda-feira, depois do Benfica perder contra o Setúbal, toma conta de mim um vazio, porque percebo que o mundo e a vida não fazem sentido quando o Benfica não ganha, e porque tenho a vaga impressão que no meu clube nem toda a gente pensa e vive obcecada em ganhar como eu. E isso é uma coisa que me transtorna mais do que a eleição de Trump. E não há nada pior para um paranóico como eu do que ser efectivamente perseguido.
"Tristeza não tem fim, felicidade sim" - Tom Jobim
O meu problema com o Benfica, confesso, é a sua felicidade. O meu clube é o clube da alegria. O nosso cântico mais famoso é um grito acelerado das nossas sílabas, sem espaços, até ficarmos sem fôlego: “SLB! SLB! SLB! SLB! SLB!” seguido de um “GLORIOSO!”, que é uma exclamação sem mais, porque não há necessidade de explicar de quem é a glória, de tão óbvio que é.
O Benfica é uma alucinação contínua de vermelho, de pessoas que viveram convencidas que Nuno Gomes era sequer comparável a Jardel, de adeptos que só agora percebeu que Akwa não foi o novo Eusébio, e que é provável que Makukula também já lá não chegue.
Ser do Benfica é ter acreditado que íamos ganhar ao Porto com Ronaldo, Paulo Madeira ou com Rojas e Sérgio Nunes (eu era um deles). Quando entramos na Luz, há pessoas que sem nos conhecerem de lado nenhum gritam: "É O BENFICA!". Mas é o Benfica o quê? E é este o clube que eu, um adepto com alma de treinador, que vive pessimista e a achar que tudo vai correr tão mal como no outro dia, amo profundamente e para sempre.
É esta a minha cruz: acho sempre que vai correr tudo mal a um clube cuja idiossincrasia é acreditar piamente que vai ganhar sempre, não importando se temos Bossio na baliza ou Celis no meio-campo. Somos o Benfica, portanto é suposto que no fim corra bem, vá-se lá saber porquê.
Apesar do meu ateísmo, a matriz judaico-cristã inculcou em mim este complexo de culpa: eu atribuo as culpas de todos os nossos desaires a esta felicidade. Há algo dentro de mim que acredita que se todos os benfiquistas fossem duros e meticulosos nas análises como eu, este clube seria mais exigente e iria mais longe. Mesmo com sete pontos de avanço para o Porto (na altura menos para o Sporting), era fácil intuir que nos faltava um número 8 (comprámos Rafa, Cervi e Zivkovic – todos excelentes – para colmatar a saída de Gaitan e para o centro nada), dado que em 2014/2015 Pizzi chegou para as encomendas por muito pouco.
Mesmo com a equipa em primeiro e a ganhar duas vezes em Guimarães, os métodos defensivos que Rui Vitória herdou de Jesus pareciam-me cada vez piores - e não me deixei convencer pelos elogios de Pep Guardiola, comparando-nos a Sacchi. Aliás, acho uma heresia comparar o mestre Arrigo a um treinador que tem de beber água antes de cada canto contra nós porque acredita que isso é que vai tirar dali a bola.
É como comparar um doutorado em meteorologia com um gajo que leva sempre guarda-chuva porque a Tia Amélia lhe disse que tinha dores nas artroses.
Rui Vitória é um tipo simpático a quem, de facto, foi dado um Ferrari e que pode ser campeão ainda este ano porque está a correr contra Fiats em terceira mão. Mas isso não lhe dá particular mérito. E se nós, Benfiquistas, não estivéssemos sempre felizes, talvez víssemos que falta uma peça ao Ferrari (um número 8 à Enzo ou Renato) e que o condutor até pode chegar ao fim em primeiro, mas com um a sério estávamos a dar voltas de avanço.
Ainda por cima, este ano não podemos contar com os discursos motivacionais de Jorge Jesus (que está ocupado a culpar Adrien e William pelos resultados da equipa) para colmatar as óbvias deficiências tácticas que já tínhamos e que as vitórias esconderam.
Mas se num clube normal ir em primeiro ilude, no Benfica cega. Achou-se que tudo estava controlado e que o tetra ia ser um passeio. Cachecóis ao vento e bazófia do tamanho do terceiro anel. De repente, temos só um ponto de avanço, Pizzi e Jonas estão com a forma física de Cavaco Silva, Grimaldo lesionou-se há tanto tempo que não me lembro se era o nosso defesa-esquerdo titular ou se era suplente do Veloso e finalmente acenderam-se os alarmes. Hate to say "I told you so", but... I told you so.
"In "Confessions of a Winning Poker Player," Jack King said, "Few players recall big pots they have won, strange as it seems, but every player can remember with remarkable accuracy the outstanding tough beats of his career." 
Matt Damon, em Rounders
No mundo em que eu quero viver, o Benfica era campeão todos os anos. Às vezes ponho-me a sonhar e penso: “Fazíamos o tetra, ficávamos com 36 depois o Porto ganhava um, ficava com 28 e nós logo um tri e íamos para 39 e...” e uma voz grita-me: “Porra, um título do Porto? Que é que correu mal?!” e imagino os Aliados cheios e o Carlos Abreu Amorim a falar e reformulo. “Fazemos o penta, ficamos com 37 depois o Sporting ganha um e fica com 19, mas nas cabeças deles até pode ser mais, e nós fazemos um tetra e...” - e vem a voz. “Um dos lagartos? Mas assim só faziam 16 anos sem ganhar! Queremos as bodas de prata sem campeonatos!”.
Até que a minha cabeça lá cede e pensa: “Yaaa, ganhávamos TODOS os anos. TODOS.” E sorrio.
O mundo seria, finalmente, perfeito.
É possível que eu exagere no meu grau de loucura e exigência, mas era isto que eu queria. E para isso acontecer, acredito piamente que tínhamos que matar esta alegria intrínseca de ser Benfiquista.
O Benfica tem que ser a máquina de guerra que foi no 3-1 para a Taça em 2013/2014 contra o Porto e durante toda a segunda volta da época passada contra o Sporting.
Ganhar tem que ser uma urgência, uma necessidade tão importante como respirar. Ganhar devia ser, para as pessoas que trabalham no Benfica, uma obsessão que os deixasse sem dormir. Sonho com um clube hiperprofissional, preocupado com a minha felicidade e bem estar mental (porque é isso que está em jogo) e que não me enfiasse o Filipe Augusto Mendes pela goela abaixo dia 31 de Janeiro.
Preciso de um treinador que acredite que o melhor método defensivo para um canto não é beber uma garrafa - quero Sarri, o treinador do Nápoles, com aqueles olhos de quem só vê futebol e com aquela ponta de cigarrilha no casaco, de quem fuma sempre que um avançado falha um golo fácil.
Quero um clube em que, volta e meia, toda a gente seja obrigada a ver o golo do Kelvin para nos lembrarmos do que é estar na lama para não querer lá voltar.
Imaginar que alguém no Benfica baixa a guarda durante um dia que seja é, para mim, como imaginar um cirurgião a operar sem luvas só uma vez porque “o que é que pode correr mal?”.
“Creo que está claro que hemos ganado un punto”
Luis Enrique, treinador do Barcelona, após empatar com o Betis, tendo tido um golo escandalosamente não invalidado e depois de uma exibição horrível.
“Forçámos de todas as maneiras e feitios”
Arnaldo Teixeira, treinador adjunto do Benfica, referindo-se a qualquer coisa que não o processo ofensivo do meu clube, suponho.
"Só a verdade é revolucionária" 
António Gramsci
É deprimente para mim fazer este papel, o de tipo que só aparece nas derrotas, como se as desejasse, mas não é esse o objectivo.
Não tenho amarguras contra ninguém e devo a Rui Vitória, um treinador que não consigo respeitar e que me parece uma pessoa que à noite vê novelas da TVI em vez de estar a estudar futebol, o título mais saboroso de sempre.
O meu problema é que vejo no Benfica uma daquelas crianças que come demasiados doces e está sempre feliz e a brincar sem cuidado nenhum, aos pulos entre sofás, a fazer equilibrismo numa cadeira só com um pé (“Olha só pai, agora só com um pé! Agora sem médios centro! Agora a ter como plano B mandar um central para a área nos dois últimos minutos de desconto e passando o Jonas para o meio-campo!”) e eu sou aquele pai que passa a vida a dizer “tem cuidado”, “está quieto”, “olha que partes a cabeça”.
Quando se ganha um campeonato com uma sorte impressionante (revejam o lance do nosso golo ao Boavista o ano passado, a carambola que nos dá a vitória em Vila do Conde, lembrem-se de Arnold a falhar o 2-2 na Luz pelo Setúbal e - pausa, pausa - uma ronda de aplausos para o eterno Bryan Ruiz e o seu lance espectacular e admitam-no nem que seja para vocês), ninguém nos ouve.
É como se a criança tivesse nascido para ginasta e está tudo na sala a bater palmas e ninguém ouve o pai (“Está calado, pá! Que chato! Dá-lhe, puto! CARREGA BENFICA!”). Mas quando a criança bate com a cabeça no canto da mesa, ninguém nos olha na cara porque não nos querem dar razão.
O Benfica tinha problemas mesmo quando foi campeão (sobretudo nas duas últimas épocas), e falar disso não nos faz menos Benfiquistas e é essa a cultura que eu quero.
Para chegarmos ao tetra e não vermos o Mal vencer, importa, de uma vez por todas, matar a bazófia, escrutinar cada erro e tomar conta do Benfica como se fosse um filho que já esteve nas drogas ou, pior, em Maio de 2013, e não como um mimado que acha que tem direito a tudo, quanto mais a fazer equilibrismo com um só pé na cadeira.
Há que exigir, exigir e exigir. Uma oportunidade histórica para o tetra não pode morrer aos braços da bazófia, do acreditar que um treinador que só diz banalidades e repete várias vezes “a família benfiquista” é suficiente.
O diagnóstico, para mim, é esse: temos que matar a alegria.
A alegria, as festas e os gritos devem vir lá para abril ou maio e aí sim, devem ser completos, com loucura, gente a abraçar-se na rua, a cantar e a dançar, celebrando esta magia que é ser do Benfica. E aí sim, eu dormirei bem.

Manuel Neves, in Coluna Expresso

1 comentário:

  1. Grande (bem escrito) texto! E quanta objetividade na análise à equipa, Rui Vitória! A amargura das derrotas, dos jogos mal jogados, do que não vemos e queríamos ver no Glorioso, doem que se fartam. É por isso que exigimos mais, agora e sempre, sempre mais do nosso Benfica, dos nossos atletas, das nossas equipas técnicas, da nossa direção. O oito, um oito pronto e à altura do Benfica, está-nos entalados no juízo, Rui Costa, Vieira, Vitória ou quem quer que seja. O trete-treme da nossa defesa nas marcações de cantos e livres, escavaca-nos os nervos - e a previsibilidade com que os marcamos, não nos empolga. Há trabalho para fazer que ainda não foi feito. Pelo menos é o que parece. Somos exigentes? É claro que somos. Haverá outra maneira de ser benfiquista?

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