"Não é a primeira vez que falo nisto: cada jogo de futebol está cada vez mais convertido numa cómica (?) peça de teatro de mau gosto: é um corrupio de manha e trapaça do primeiro ao último apito! Exagero? Não por aí além. Vejamos:
Nem por se jogar predominantemente com os pés, o futebol pode converter-se num espaço onde se pode pisar à vontade a justiça desportiva e até o código das boas maneiras, convertendo-se em objecto de rebaixamento axiológico e de depreciação ética. Pelo contrário, esse admirável facto transgressivo de utilizar sobretudo os pés, além de emprestar a esta modalidade um acrescido encanto, uma certa magia, aumenta, até por isso mesmo, o grau de responsabilidade de seus agentes – dentro e fora do terreno de jogo.
Facto indesmentível: o futebol vem, desde a sua normatização no britânico contexto de revolução industrial conjugado com as novas perspectivas pedagógicas, sofrendo um evidente processo de autonegação: quer da sua matriz genética – rústica e até bélica - , quer no que parece ser uma certa efeminização da sua específica normatividade, das suas regras. A originária atitude de uma rija entrega e de brava luta em campo, quantas vezes enlameado, tem vindo a ser substituída por uma torpe mentalidade do atalho: do expediente ditado exclusivamente por uma esperteza arrivista.
Ao ter entrado o capital, naquela sua típica fossanguice acumulativa, de cabeça, no mundo ingénuo de um futebol de verdadeira entrega, este passou a ser contaminado pelas taras típicas do imediatismo fugaz da avidez argentária, da obsessão pelo lucro: passou a ser arena exibicional de toda a espécie de truque e ardil. Maquiavel, além de já ter sido erigido à condição de fundador do Estado moderno, passou a sê-lo também do futebol que temos: o fim (o lucro=vitória) justifica todos os meios! O lucro veio impor o desígnio incondicional de uma vitória a todo o custo e, com isso, ficaram justificados todos os malabarismos de ronha, fita e ladinice, pois que o que importa mesmo é chegar à vitória com o mínimo de esforço e, se necessário, à custa mesmo do suor do adversário – sobrando sempre aquele sorriso trocista e indecoroso do autor do mergulho olímpico na área contrária, iludindo, com espalhafato e alarde, o angelical e tíbio senhor vestido de negro (agora já exibe cores mais festivas!) e que costuma entreter-se com um apito na boca, adereço sucedâneo de uma fatal incontinência verbal – um sonoro tique de serôdio autoritarismo! Deixem-me fazer uma afirmação – ela anda na boca de muita gente, mas nem todos podem escrever para A Bola: oitenta por cento, pelo menos, das faltas apitadas são pura fita, A esmagadora maioria das quedas têm esta característica: quem cai só caiu porque quis cair – podia perfeitamente ter evitado tão eficaz e convincente queda. Porque, descontando os inúmeros casos em que nem sequer há toque, a maior parte das vezes, este, quando existe, ele é inerente à natural e desejável dinâmica do próprio jogo – ele decorre da própria natureza gestual que caracteriza o futebol. Isto é, apitar sempre que cai um jogador (sem cuidar de ajuizar se ele não optou antes por se atirar) é participar activamente no processo entrópico de descaracterização de um jogo que, sendo matricialmente, multitudinário, se está a converter cada vez mais em desporto de massas entediadas e bocejantes.
Porque cada vez mais as pessoas, que gostam da bola, mas que não vão à bola com este modo de a não jogar, se sentem ludibriadas com um espectáculo à base de jogos de sombras e ilusão. Sim, o campo, que passou de pelado a relvado (gramado) não pode, entretanto, passar de campo de rija refrega (Desmond Morris) para átrio alcatifado de hotel de luxo, ou para uma melindrosa loja de porcelanas – nem sequer se pode converter em lavandaria que oferece prémio a quem terminar o jogo sem sujar os calções!
Sem ser um ringue de boxe (o boxeur, porém, não faz ronha: quando cai é porque o uppercut do adversário lhe acertou em cheio), o campo, no que se refere concretamente ao futebol, tem que ser um palco onde os actores exibem rijeza, rusticidade e bravura, em vez de uma gelatinosa e macia fofura. Sugiro que os árbitros sejam sujeitos a duras provas de resistência emocional e que passem a fazer um estágio nas urgências dos hospitais, para que aprendam no que dá quando a queda é mesmo a valer – e aprendam a resistir ao primário impulso de se comoverem com uma queda qualquer, mesmo, ou sobretudo, se espalhafatosa.
Irónico: toda agente diz que o futebol é desporto de inverno, mas os protagonistas passam o tempo todo a atirar-se para a piscina.
Se queremos salvar o futebol temos que lhe acudir quanto antes – que ele está na maca!
Temos que travar esta marcha que ameaça matar um dos desportos mais fascinantes que, ao que dizem certos sociólogos, vem de tempos imemoriais (China, Japão e a própria Grécia Antiga), não permitindo que definitivamente se converta no offshore da marosca, da burla, da trapaça.
Tudo às mãos do sacrossanto desígnio do lucro!
Chega de teatro, vamos à vida!"
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