segunda-feira, 18 de junho de 2018

HÁ DESPORTO SEM VALORES?


Considero o Desporto um dos aspetos da Motricidade Humana, quero eu dizer: do movimento intencional e em equipa da transcendência. E digo ainda que a motricidade supõe: uma visão sistémica do ser humano (que o mesmo é dizer: em termos de regulação e de integração); a existência de um ser não especializado e carenciado, aberto ao mundo, aos outros e à transcendência; e, porque aberto ao mundo, aos outros e à transcendência, e deles carente, um ser em movimento e um ser práxico, procurando encontrar e produzir o que, na coopetição (a síntese entre competição e cooperação) lhe permite a realização pessoal; e, porque ser práxico, com acesso a uma experiência englobante, agente e fautor de cultura, projeto originário de todo o sentido e ser axiotrópico (que persegue, apreende , cria e realiza valores). Do que venho de escrever se infere que, na prática desportiva (uma práxis lúdico-agonística, no movimento intencional da transcendência) o radical fundante só pode ser o de uma ciência humana. No entanto, não me esqueço do que li em Heidegger, no seu Kant e o problema da metafísica: “Nenhuma época acumulou sobre o homem conhecimentos tão numerosos e tão diversos quanto a nossa. Nenhuma época soube apresentar o que sabia, acerca do homem, de modo mais consistente e original. Nenhuma época apresentou esse saber tão prontamente e tão rapidamente acessível. Mas também nenhuma época soube menos quem é o homem do que a nossa”. Quando vejo e oiço, na televisão (principalmente agora, em democracia, que proíbe qualquer látego censório contra a liberdade de expressão) algumas pessoas falarem da prática desportiva, sem o contributo de uma filosofia, imediatamente se descobre que há nelas um lamentável esquecimento: não há prática responsável sem teoria e não pode haver ciência sem filosofia. De facto, cada uma das disciplinas científicas têm um campo e um traçado próprios, não parecendo possível que elas nos conduzam a uma visão global do ser humano.
Na minha tese de doutoramento, velha de 33 anos, já eu escrevia: “Ninguém, razoável, duvida: definir o Homem é um risco. Risco em toda a plurivalência da palavra. Na verdade, como fixar com exactidão a subjectividade humana?… E não poderá mesmo, em novo risco de audácia, dizer-se que o homem é um mistério, pois que existe uma parte de si mesmo, que não cabe nas nossas categorias intelectuais e pragmáticas, mas tão real que antes de ser pensada já a experimentámos? Que o homem tem um sabor experiencial da realidade, antes de ter dela um conhecimento conceptual – parece inteiramente certo! Ama-se e só depois refletimos sobre o amor; sente-se um anseio inapagável de liberdade e só depois pensamos na liberdade, como dimensão fundamental do homem. A riqueza ôntica de um ser ultrapassa o seu conhecimento intelectual. Não é a mesma coisa o que está em mim e o que está diante de mim” (4ª. edição, p. 68). E, linhas adiante, com palavras que mais sugerem do que conceptualizam, escrevo ainda: “ser humanamente é agir para ser mais. Ser humanamente, porém, abarca um drama inenarrável: é o sinónimo de ser-no-tempo, ser finito, ser-para-a-morte. E, por mais que o homem seja, ele sente-se um ser despojado da verdade e da imortalidade (…). Mas encontrar-se-á o homem encerrado no finito, sem poder ultrapassá-lo? A análise da existência mostra-nos, quer os constitutivos de toda a existência, quer as suas exigências primaciais. Ora, uma destas exigências reside no reconhecimento de que o homem é via ad aliud, ad alium. Não pode parar em si. Tem de amar alguma coisa e alguém, se não quer cair no narcisismo. Tal é o sentido último da transcendência (…). A razão última do ser humano não se circunscreve à verdade lógica, mas à verdade ôntica, pois não é a mesma coisa saber e experimentar” (op. cit., pp. 82/3). E assim levanto já uma interrogação: que homem é o Cristiano Ronaldo, que permite a sua genialidade?
Conheci jogadores de futebol portugueses de muito bom nível físico-técnico-tático. Nenhum deles com os desempenhos que o Cristiano Ronaldo já alcançou. “O hat-crick de ontem, frente à Espanha (o 22º. na Seleção Portuguesa, dos quais seis pertencem a Cristiano Ronaldo; Pauleta é o segundo, no ranking, com três) permitiu a Cristiano Ronaldo chegar aos 84 golos, por Portugal, em 151 jogos. Igualou o histórico Puskas, que também fez 84 golos em 85 encontros e que era o melhor marcador de sempre de uma seleção europeia” (Hugo Vasconcelos, A Bola, 2018/6/16). Segundo este mesmo jornal, na página 7, o atual capitão da seleção nacional é “o melhor jogador da história do futebol português” e, no jogo do passado dia 15/6/2018, “assinou a maior exibição individual da História de Portugal, em Campeonatos do Mundo”. E continua, com funda emoção poética, o jornalista Rogério de Azevedo: “Por mim, parava de escrever já aqui, tal a dificuldade que sinto em adjetivar o jogo de Ronaldo. Foi poema de Fernando Pessoa, livro de Saramago, quadro de Júlio Pomar, arquitetura de Souto Moura e canção de Zeca Afonso. Mas tudo junto: poema, livro, arquitetura, quadro, cantiga”. O engenheiro Fernando Santos, selecionador nacional, foi mais “científico”, nas suas afirmações, referindo-se ao CR7: “Mais importante do que a capacidade física e a técnica de Ronaldo é a sua força mental. É incrível, impressionante. Isso é que faz dele o melhor do mundo”. Por seu turno, Fernando Hierro, selecionador do futebol espanhol, assim desabafou: “Ter Ronaldo… é uma sorte!”. Volto ao que já escrevi: conheci jogadores de futebol portugueses de muito bom nível físico-técnico-tático. O Rogério, Coluna e Eusébio (Benfica); o Vasques, Travassos e Albano (Sporting), o Hernâni, o Pedroto e o António Oliveira (F.C.Porto), o Matateu e Vicente (Belenenses) foram, no passado, os jogadores que mais me entusiasmaram, embora o meu remedeio de palavras incolores não me deixe retratar, neste momento, a “classe” destes jogadores-artistas.
No entanto, tenho de reconhecer que, após 80 anos de espectador atento do futebol português e de ter merecido o convívio fraterno de alguns treinadores de futebol, que muito me ensinaram e romperam caminho próprio por efeito de prática incessante, riqueza moral e singular inteligência – Cristiano Ronaldo é, atualmente, para mim, o maior jogador português de todos os tempos. Recordo a série lastimosa de fracassos das nossas seleções, que nos levava a um pessimismo de encolher os ombros, com desânimo. O semi-amadorismo, uma incipiente medicina desportiva, a baixa competitividade, a ausência de uma informação atualizada não nos deixavam ultrapassar a mediocridade. Estávamos “orgulhosamente sós”, até no futebol. Sim, é verdade que o quinteto do Benfica: José Augusto, Eusébio, Águas (Torres), Coluna e Simões foi o melhor da Europa, durante a primeira metade da década de 60. Mas, sem Eusébio (o génio) e sem Coluna (o talento superior do meio-campo), só com Pedroto, Pinto da Costa e Mourinho o futebol português atingiu o ambicionado alvo de poder situar-se na via do progresso e do desenvolvimento. Quando eu procurava o estatuto epistemológico da motricidade humana e do desporto tive a sorte de José Maria Pedroto conceder-me o privilégio de poder fruir a sua amizade, numa convivência humana e intelectual que muito me enriqueceu. A partir do meu convívio com Pedroto comecei a perceber que… não há jogos, há pessoas que jogam! O Sporting não perdeu a última Taça de Portugal, por motivos táticos, mas por outros que são mais do que futebol. Também o Cristiano Ronaldo, segundo Fernando Santos, é de uma honestidade impecável, no treino, nos jogos, no convívio com os seus colegas de equipa e com a equipa técnica. Por isso, aos 33 anos de idade, ninguém pode beliscar a serena consensualidade reinante de que é ele, e não outro, o melhor jogador do mundo. É que não há Desporto sem valores. Desde o jogo-desporto até à alta competição. O verdadeiro campeão é aquele a quem pode associar-se espetaculares desempenhos e grandeza humana – física, intelectual e moral.
Manuel Sérgio, in a Bola

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