sexta-feira, 29 de março de 2019
A JUSTIÇA POPULAR, DE NOVO
Sou sócio do Benfica há quatro décadas e das poucas coisas que tenho certas é que em circunstância alguma abandonarei a minha condição de adepto do Glorioso. Mas a paixão clubística mas não me levará a deitar às malvas fundamentos sacrossantos, nomeadamente aqueles que devem organizar um Estado de direito numa sociedade decente. Na verdade, é quando o tema é futebol, por definição um território movido a paixões, que os nossos princípios são postos à prova. É por isso que devemos deixar ao futebol o que é do futebol e à Justiça o que é da justiça. Vem isto a propósito da sucessão de declarações lamentáveis que a minha amiga Ana Gomes proferiu este fim de semana em entrevista ao Record, agora a propósito de futebol mas em linha com o que se tem afirmado sobre muitas outras áreas. Quando o tema é Justiça, a Ana tem o condão de nunca acertar. Como todos os portugueses, tenho convicções subjectivas sobre a culpabilidade de muita gente e vivo com inquietação os casos com que a Justiça é passiva ou revela incompetência. Pior mesmo, só a sensação de que, entre nós, o sistema de justiça promove, demasiadas vezes, a culpabilidade na praça pública, não cuidando de produzir prova robusta em tribunal. Infelizmente, em Portugal, temos acumulado demasiados casos em que há mesmo fumo sem fogo - o que aconselha a não partirmos do princípio de que qualquer indício, devidamente promovido na praça pública corresponde a um ilícito criminal. Pois o que a Ana faz, é alcandorar-se a justiceira e cavalgar qualquer presumível culpabilidade - sem nunca cuidar de perscrutar os factos ou desrespeitar a presunção de inocência-, para logo decretar subjetivamente uma condenação definitiva. Precisamente o que a justiça não deve fazer. Se já é assim em muitas áreas, futebol, e com a alavancagem das redes sociais, torna-se mais fácil fazer regressar tribunais plenários e o conceito de justiça popular ganha novas vestes, mas preserva a sua tenebrosa identidade. Ontem, como hoje, sustenta-se em julgamentos sumários, violação da privacidade, desrespeito pelas garantias processuais e, acima de tudo, sentenças sustentadas nas emoções da turba. Os riscos são, aliás, significativos. Se estivermos dispostos a deixar que a justiça popular trilhe o seu caminho no mundo do futebol, rapidamente lhe iremos escancarar as portas nas outras áreas da nossa sociedade. Convém não tratar as coisas da Justiça como se fosse um dérbi: trincheiras, muita paixão e incapacidade de preservar um chão comum, com regras do jogo partilhadas. Numa - essa sim - notável entrevista ao "Expresso" este fim de semana, o advogado Rui Patrício lembra o óbvio:"O processo penal não serve para punir culpados, mas para averiguar: se há culpados." Nos tempos que correm, essa é que é infelizmente, a afirmação corajosa.
Pedro Adão e Silva
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