terça-feira, 28 de maio de 2019

LÁ LONGE, JAIME GRAÇA...


"Era campeão no campo e na vida. Talvez lhe tenham chegado, ecoando nas caudas dos cometas, os gritos felizes de benfiquistas em festa. Mas, mais do que isso, esteve em campo, no Estádio da Luz. Porque a memória e o reconhecimento também são uma das imagens indeléveis dos grandes campeões.

Ainda há ecos da festa. Ainda há pessoas pelas ruas vestidas de camisolas vermelhas. Orgulhosas. Triunfantes.
O mesmo tom de vermelho que Bruno Lage envergou quando vestiu, por cima do seu habitual traje negro, a camisola de Jaime Graça.
A última vez que encontrei o Jaime foi à porta do Seixal. Não me recordo do motivo. Ou nem sequer o houve. Foi apenas cruzarmos-nos, trocar palavras, ouvi-lo durante uns minutos porque valia sempre a pena ouvir o que ele tinha para dizer.
Bruno Lage não esqueceu Jaime Graça no momento mais feliz da sua carreira.
Sejamos correctos: ninguém que foste de futebol pode esquecer Jaime Graça.
Era um tipo baixinho, cheio de energia, ele que antes de se estrear pelo Benfica já era o Jaime Graça de Portugal, titular da selecção nacional no Campeonato do Mundo em Inglaterra, em 1966, lado a lado com Coluna, acabado de assinar contrato, vindo do Vitória de Setúbal.
Era um daqueles jogadores que não deixavam dúvidas. Técnica requintada, um bulício contínuo de dobadoira, acorrendo a todos os espaços que corriam o risco de se tornarem potenciais focos de perigo para a sua equipa, passes certeiros, desequilibrantes.
Ah! Não. Jaime Graça não enganava! Ele que nasceu no mesmo ano que Eusébio, 1942, em Setúbal, origens de gente trabalhadora, sem dinheiro, irmão de Emídio, que também jogou no Vitória, emérito de stick nas mãos, no hóquei em patins. A malta dizia. 'Jogava de caras no Barcelona!' Ganhou a alcunha de Catalunha.
Jogava de caras no Barcelona. No hóquei e no futebol.
Jogou de caras no Benfica.
Jaime, o baixinho Jaime enorme Jaime. Tinha para aí uns 36 pulmões, acreditem.

Campeão na vida!
Não sei o que existe para lá da planície da eterna saudade. Ainda não chegou a hora de ter esse conhecimento infinito. Sei que aí, no lugar onde anjos-meninos dão pontapés certeiros na empaturrada imagem deste mundo, como escreveu uma vez Torga, o Poeta da Montanha, ele se entretém a observá-los e a apontar, sem dúvidas, aqueles que poderiam jogar a seu lado no Benfica da imensidão do tempo: Coluna, Eusébio, Torres... Eles também por lá, a seu lado.
Jaime Graça, percorreu o Estádio da Luz na camisola de Bruno Lage.
Mais uma vez foi campeão.
Campeão em cima dos sete campeonatos que somou enquanto por cá esteve.
Campeão que fez um golo numa final da Taça dos Campeões, contra o Manchester United.
Campeão quando, em Dezembro de 1966, salvo a vida Malta da Silva e de Eusébio no acidente com o sistema de hidromassagem que ditou a morte de Luciano.
Diria simplesmente: 'Percebo algumas coisas de sistemas eléctricos. Trabalhei nisso quando era miúdo'.
Não salvou o infeliz Luciano, de Olhão, mas havia certamente um deus qualquer a iluminar a sua serenidade naquele momento trágico.
Não basta apenas ser campeão no campo da relva, com balizas em cada ponta: é preciso ser-se campeão na vida!
Jaime Graça foi um campeão da vida e, lá longe, onde se calhar os gritos felizes de benfiquistas felizes ressoam nas caudas dos cometas, não deixou de ver, com o orgulho paternal de homem sincero, Bruno Lage vestir a sua camisola e ir, com ela, receber ao pescoço a medalha dos campeões.
Já no meio-campo era assim: via tudo. Adivinhava o futuro imediato da progressão da bola, pressentia o pensamento dos adversários, lançava sobre os companheiros mensagens silenciosas, desbravando-lhes caminhos, como se tivesse o dom da telepatia,
O tempo já passou sobre a morte do Jaime. Tinha 70 anos e encantou-se, para usar a expressão maravilhosa de Guimarães Rosa - 'A gente não morre. Fica encantado'. E dois dias depois de a ter proferido, encantou-se.
Jaime Graça está lá longe, encantado. Ou, se calhar, está aqui bem perto, vivendo no conforto da alma de um jovem que se chama Bruno Lage e que está no caminho certo para se tornar um campeão da vida..."

Afonso de Melo, in O Benfica

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