"Há imagens que nos reconciliam com o jogo, como as do adeus de Di María a Paris, futebolista singular que se afirmou no plural de uma equipa, génio e gregário ao mesmo tempo e sem paradoxo, quando perdeu velocidade ainda ganhou qualidade, percebeu que o jogo tem outros ritmos que não só o da vertigem, interrogo-me se faz sentido que o PSG o deixe partir já, mais ainda quando os colegas lhe reservam aquela guarda de honra no adeus, é porque gostam dele, de certeza, e o respeitam, homem e jogador, a aplaudi-lo e a abraçá-lo, como doutores de praxe, três dos poucos que a escala de génio permite colocar ainda acima de Angelito, Messi, Neymar, Mbappé, todos ali, dizendo-lhe como foi grande, entre afagos e sorrisos, ele de olhos humedecidos, a mulher na bancada em lágrimas, o futuro ainda lhe há de ter mais alegrias guardadas mas o que está feito é maravilhoso e acredito que só tem um adeus assim quem o merece, jogador e homem.
Também Guardiola deixou perceber lágrimas raras, abraçado a Lillo, velho guru que puxou para junto de si quando as convicções vacilavam, dois anos juntos e mais dois títulos de campeão, quatro em seis anos lá em Inglaterra, onde é mais difícil ganhar, porque, melhores ou piores, há sempre Chelsea, Arsenal, United, Tottenham (já agora, que recuperação notável num grande trabalho, mais um, de Conte) e acima de todos esses há o Liverpool, o melhor desde que deixamos de ver em campo ao mesmo tempo Dalglish e Rush, aquele par de senhores grisalhos que se mantêm juntos quinzenalmente, agora nas bancadas de Anfield, para aplaudir Salah e Mané, os sucessores, este Liverpool que será sempre o de Klopp, tão histórico o alemão já como Shankly, Pailey ou Fagan, e que duelo o do último domingo, podemos correr todo o planeta e não encontraremos parecido, como hão de passar décadas sem que vejamos outros City e Liverpool como estes, palmo a palmo, ponto a ponto, Pep e Klopp, treinadores para a lenda, ao mesmo tempo homens que fazem bem ao jogo, nas propostas que valorizam o talento técnico e o risco tático, gémeos falsos, equiparados na inteligência, na facilidade de discurso com que distinguem o essencial entre sorrisos e ironia boa, e tanto fair play, do autêntico, daquele que autoriza que o rival também tenha mérito, inveja disso, do melhor futebol do mundo, que é o que tem saído da cabeça de cada um deles e dos pés dos que eles escolhem.
Quero destacar isso, os pés dos que eles escolhem, de dois em particular, Thiago Alcântara e Gundogan, um filho de arte brasileira, exagero bom no apuramento dos genes face ao pai Mazinho, mais o filho de imigrantes turcos nascido em Gelsenkirchen apenas meio ano antes, já apagaram ambos as velas dos 31, que andem por cá mais algum tempo, vê-los jogar é dar razão a Cruijff outra vez: "o futebol é joga-se com a cabeça e as pernas estão lá apenas para ajudar". Sobre Thiago escrevi aqui há menos de um par de anos, quando era menos unânime porque ainda não tinha sido escolhido por Klopp, que não há médio centro que me encante mais, talvez só Modric mereça o cotejo, falavam-me dos médios do Liverpool pela intensidade, pela pressão, pela capacidade nos duelos, desfilavam Fabinho, Henderson, Keita, Milner, pareceu-me sempre que faltava ali classe, deixou de faltar, Klopp foi buscar o homem que antecipa as soluções todas, que vê mais campo apesar de precisar de menos, revejam aquele toque para Mané no primeiro golo aos Wolves, está lá tudo, perceber melhor (o jogo), decidir mais depressa (o que fazer), executar na perfeição (o passe), tudo o que o jogo tem de melhor: inteligência, intuição e arte. E pensar que há um ano apenas tantos me queriam convencer de que Jorginho ou Kanté mereciam a Bola de Ouro. E se perguntasse há dois dias: entre Pogba e Gundogan, quem escolheriam? Interrogo-me,sabendo a resposta da maioria, que decompõe homens em fatias como se não fosse o todo que mais conta, Gundogan não é alto, nem rápido, nem grande driblador ou rematador, e todavia faz tudo bem, sobretudo pensa bem e passa bem, e passa bem na hora mais difícil mais difícil, quando a pulsação acelera e pares de pernas se aglomeram, descobre os atalhos todos, para fazer passar a bola e para passar também ele próprio, invisível para os rivais rumo ao destino da baliza, valorizam-no ao menos por isso, pelos golos, por essa qualidade de juntar frieza e qualidade de execução (o que é ter golo, afinal?), o City só é campeão porque tinha para lançar o homem com nome de medicamento e que evitou a mais dura das ressacas, tome um Gundogan que isso passa, passou a depressão, fez-se a festa, melhor que tê-lo lançado na substituição certa é tê-lo, simplesmente, tê-lo ali, no grupo e pronto a jogar, fazendo das lágrimas sorrisos e destes lágrimas outra vez, mas felizes."
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