sexta-feira, 9 de dezembro de 2022

CATARSES 2️⃣3️⃣ CARTA ABERTA A FERNANDO SANTOS

 


"“Vivos, mortos ou no mar” - estas eram as opções da roleta russa existencial dos marinheiros de antanho. Assim, também a vida das grandes figuras do futebol enfrenta permanentemente três possíveis “status quo post bellum”, como os rebuscados de Latina se referiam aos resultados das guerras: seguir em frente, ser eliminado ou ficar à mercê de um tiro no escuro.
Esta é igualmente a história de Fernando Santos, o treinador português de maior sucesso, Capitão de Mar-e-Guerra do Europeu, Comodoro da Liga das Nações e possível Almirante do Mundial. Quando enfrentou estes mares raramente navegados, conseguiu sempre encontrar o caminho de regresso, com mais ou menos enjoos, e agora lá vai ele outra vez, nas águas cálidas do Golfo Pérsico, com meio caminho andado desta circum-navegação virtual dos tempos modernos, do banho nas costas selvagens do Gana ao sobreaquecimento dos glaciares da Suíça, voando com os “pássaros pintados” do Uruguai ou perdendo por momentos o azimute no paralelo 38 da Coreia.
Seguro ao comando, sem receio do naufrágio futebolístico, que bela viagem está fazendo, senhor engenheiro - permita-me que o trate assim, pela primeira vez, nestes meus desabafos catárticos com que tento disfarçar a ansiedade obsessivo-compulsiva de ainda estar vivo para ver Portugal ganhar um Mundial.
Durante anos, milhares de sábios da bola, taxativos e presunçosos, apontaram-lhe os erros, as faltas de coragem, as dependências, a invejável sorte, recusando-se reconhecer-lhe o mérito pelos resultados bons e responsabilizando-o pelos maus - como se o futebol tivesse de ser preto ou vermelho, par ou ímpar, sem meio termo, de perder a cabeça, sim ou sim.
Lembra-me a personagem central da autobiografia daquele outro engenheiro de São Petersburgo, dado às filosofias e que trabalhou como preceptor, uma profissão parecida com a de treinador de meninos ricos e mimados, o grande Dostoievski, em “O Jogador”, tentando recuperar a auto-estima, a fortuna perdida e o amor não correspondido, num mundo frívolo e egoísta de generais e barões de pacotilha, nos casinos de Ruletemburgo.
O futebol consegue ser ainda mais surpreendente do que uma roleta aleatória, pois não depende da sorte da vida nem do azar da morte, mas do tal terceiro “status”, o da sabedoria de ler as cartas, sejam de jogar ou de marear, e de manter a mão quente e a cabeça fria, tanto ao leme como no carteado.
Caro engenheiro, temos em comum a amarga experiência profissional de qualquer leigo saber mais do que nós, ter mais certezas do que nós, ser presumidamente mais competente do que nós. Jornalistas e treinadores de futebol - e árbitros também - são as profissões mais fáceis e desqualificadas, as únicas em que os “caçadores de cabeças” dos recursos humanos desprezam em vez de promover e despedem em vez de confiar, com a certeza científica do marinheiro que levanta o dedo indicador molhado de saliva para perceber a direcção do vento.
Tenho de ser, portanto, solidário com o seu trajeto. Estou farto de me irritar com as suas opções, mas tento reconhecer que talvez não pudesse ser de outra maneira. Ou podia?
É que - e espero que algum dos basbaques das conferências de imprensa de Doha lhe venha a fazer essa pergunta - falta-me entender por que razão não fez as alterações desta semana mais cedo, há uns quatro ou cinco anos, quando tantos começaram a alvitrar que a soma da qualidade individual dos jogadores era muito mais valiosa do que a produção da equipa.
Por que não atalhou a rota mais cedo?
Por que foi deixando rolar o tambor até ficar testa a testa com a última bala? Não gosto nem quero associar este triunfo histórico sobre os suíços a um golpe de sorte, prefiro até pensar que as decisões tenham saído de algum conselho divino, e sei o que lhe custaram, imaginando que dobrar o ego de Cristiano Ronaldo provoque mais suores frios do que encarar o Adamastor.
E curvo-me pela sua capacidade de orientação quando me lembro que tantos aventureiros se perderam nos mares sem encontrar o rumo de regresso a bom porto.
Parabéns pela vitória, mas trate de reforçar o actual “status quo ante bellum”, o estado em que as coisas estão antes de nova batalha, liderando com mão firme, sem margem para desvios caprichosos, aqueles a quem, no próximo sábado, compete remar contra as correntes adversas das praias de Arzila, vencer finalmente Alcácer-Quibir e regressar à pátria como reis nestas manhãs frias e húmidas de dezembro.

P.S.: Por um bem maior, abro uma trégua na questão da FEMACOSA. Mas não está esquecida."

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