sexta-feira, 7 de junho de 2024

O PROCESSO...

  


Pedro Ferreira cumpre os primeiros dias de uma ligação de três épocas ao Nottingham Forest, onde vai chefiar o recrutamento da equipa da Premier League que é treinada por Nuno Espírito Santo.

Para trás ficam 17 anos de ligação profissional ao Benfica e muitos mais de conexão sentimental.
Aos 41 anos, o homem que chefiou o departamento de scouting do futebol profissional dos encarnados nas últimas cinco épocas e meia e que, antes disso, liderou a prospeção da formação do clube ao longo de sete anos, admite que estava na altura de sair da zona de conforto e de perceber que há vida para lá do clube pelo qual se confessa apaixonado. E de crescer enquanto profissional para, que sabe, um dia voltar a «casa».
Numa longa entrevista ao Maisfutebol, a primeira após a saída do Benfica, Pedro Ferreira passou em revista, de uma área à outra do campo, o percurso nas águias.
Desde a chegada em 2007, como adjunto de uma equipa de benjamins que tinha acabado de receber Renato Sanches, quando ainda era estudante e árbitro de futebol, à passagem para o departamento de prospeção e o caminho para ultrapassar os anos – ou décadas – de atraso em relação ao eterno rival Sporting e ajudar a fazer do Benfica uma referência também na prospeção de jovens talentos.
Pelo meio, foi um dos intervenientes na ida de João Félix do FC Porto para o Benfica em 2015, processo que recorda numa das partes desta conversa.
Em 2019, num período de «introspeção» no clube, passou a liderar o departamento de scouting do futebol profissional do clube, que desde então fez as três maiores vendas de sempre: de João Félix, de Enzo Fernández e de Darwin, todas com a contribuição dele e do seu – como lhe chama – «departamento de soluções», através da identificação talentos desde a formação até à elite.
Na última época, mais do que casos de sucesso, foram notícia os chamados «erros de casting» do Benfica no mercado. Jurásek, contratado por 14 milhões de euros para ser o substituto de Grimaldo, não resultou e nenhuma das opções para a frente do ataque fez esquecer Gonçalo Ramos enquanto a escassos quilómetros da Luz um outro avançado trazia fartura ao Sporting.
Maisfutebol – Fechou agora um ciclo de 17 anos no Benfica, que iniciou em 2007, na altura como treinador-adjunto dos benjamins. Como surgiu essa oportunidade?
Pedro Ferreira – O treinador dessa equipa era o André Catarino, que era meu colega na faculdade, de um ano acima do meu. Ele tinha vaga para o seu treinador-adjunto para a época seguinte e acabou por convidar-me na faculdade. Uma forma de entrar no Benfica, nessa altura de iniciação, era através de um primeiro ano de estágio. Depois, tive uma reunião com o professor Rodrigo Magalhães, que era o coordenador na altura, e também neste momento, da formação do Benfica. Foi assim que entrei no Benfica.
Portanto, ainda enquanto estudante na faculdade.
Sim. Estava na faculdade, talvez no meu quarto ano. Tinha entrado no curso com a ideia de me formar na área, porque era a minha paixão desde sempre. Mas naquele momento não ambicionava ser treinador, mas sim continuar na carreira de árbitro. Através de um desafio, comecei a treinar e entrou alguém muito importante, que foi o Filipe Coelho. Foi ele quem me desafiou: «Ok, gostas da arbitragem, mas vamos trabalhar juntos.»
Os seus planos passavam, inicialmente, por fazer carreira como árbitro?
Se recuarmos à infância, como qualquer miúdo, o meu sonho era ser jogador de futebol. Joguei no Carcavelos, mas muito cedo percebi que não seria jogador de futebol. Ok, isto é um hobby, gosto, mas depois olhamos para o lado e percebemos que há jogadores melhores e equipas melhores.
Já era um bocadinho scout de si próprio?
Sim, talvez. Muito pés no chão. Nunca fui de grandes ilusões ou de forçar a barra. Houve ali uma altura em que eu fui à seleção de Lisboa, acho que em sub-14, e é nessa altura em que, ao olhar para o lado, vejo miúdos de Belenenses, Estrela, Benfica, Sporting, tudo com jogadores que não eram melhores do que eu: eram muito melhores do que eu. E percebi que aquilo podia ser uma diversão, mas nunca um objetivo de vida, porque não ia ser jogador de futebol. Sempre tive o gosto pelo desporto, isso era claramente uma paixão, e pensei: «Ok, o curso de professor de Educação Física vai dar-me algumas bases e, depois, talvez opte por ser treinador.» No secundário fui para a área de desporto, depois fui para a FMH (Faculdade de Motricidade Humana), mas no 11.º ou 12.º ano, numa festa de aniversário de um amigo, o tio do aniversariante chegou ao aniversário com prospetos para nos inscrevermos num curso de árbitros.
E avançou.
Ninguém se inscreveu, mas eu olhei para aquilo e pensei: «Isto pode ser importante para me dar bases para a área que eu quero seguir, que é a do treino.» E fui tirar o curso, que me permitia, por exemplo, conhecer as leis de jogo mais por dentro. Tirei, gostei das aulas práticas, depois fiz aquele primeiro ano enquanto árbitro estagiário e tomei-lhe o gosto. Comecei a fazer jogos de crianças, sozinho, mas depois fui crescendo e evoluindo dentro da área e acabei por fazer jogos e equipas com árbitros que agora estão ou estiveram na Liga. E acabou por ser muito importante, porque senti que estar a arbitrar, com 18, 19 ou 20 anos, jogadores com trinta e tal ou 40 anos deu-me ferramentas muito importantes. Porque ali temos de estar a gerir o jogo e a atuar de acordo com as leis de jogo. E isso acabou por ser importante, porque estou ali sozinho e tenho de resolver. Foi interessante e trouxe-me ferramentas importantes para o que fui tendo muito mais tarde. Entrei sem ter grandes expetativas, mas fui-lhe tomando o gosto. E quando se toma o gosto vai-se subindo. Tive ali uma… carreira interessante e cheguei a um momento em que gostava do que fazia.
«No meu segundo no Benfica, a minha remuneração eram 100 euros, talvez»
E essa passagem para o treino?
Na faculdade, o Filipe [Coelho], com quem tenho uma ligação muito forte – é o meu melhor amigo e uma referência no futebol – foi ver um jogo meu e desafiou-me: «Ok, tu gostas disto, é giro, mas tenho aqui um desafio de ser o treinador dos benjamins A do Povoense. Vamos? Tens jeito e vai ser engraçado.» Eu pensei naquilo e fui falar com o Conselho de Arbitragem. Tive um regime de exceção de um ano por estar na FMH e aquilo ser também um estágio. Nesse ano, não podia arbitrar qualquer equipa que coincidisse com o Povoense e não podia ser árbitro principal na divisão em que estavam no escalão de seniores. Sensivelmente a meio do ano, o Filipe entrou no Benfica e eu acabei por assumir a equipa do Povoense até ao fim como treinador principal e isso aumentou aquele bichinho. E houve o convite do André Catarino para ir para o Benfica. Achei que não valia a pena ter outro regime de exceção e decidi abdicar da arbitragem. Entrei no Benfica nesse ano, em 2007, como estagiário. Fiz dois anos no treino, como adjunto dos sub-11, acabei o curso e comecei a dar aulas. Só que o horário das aulas era incompatível com o treino. Dava aulas de Educação Física ao lado de casa e terminava as aulas exatamente à mesma hora em que começava o treino. E nessa altura, falando com o Rodrigo [Magalhães], concluímos que não fazia qualquer sentido e acabei por passar para a prospeção da formação, que na altura era liderada pelo Rui Águas.
Tinha alguma remuneração no Benfica?
No primeiro ano não tinha remuneração nenhuma: era um estágio e os que mostrassem maior aptidão, poderiam transitar. No segundo ano, a remuneração eram 100 euros, talvez.
Se tivesse de abdicar de alguma coisa, teria sempre de ser do treino.
Sim, mas naquele momento senti que era um investimento. O Benfica também nos dava a possibilidade de entrarmos dessa forma e depois fazermos por merecer alguma coisa. E, mais do que estar à espera de ganhar isto ou aquilo, eu queria era ter bases. Vinha do Povoense e quando cheguei ao Benfica apanhei uma geração de 97, que tinha jogadores muito bons. E percebi que ainda não sabia nada daquilo e que estava ali essencialmente para aprender com treinadores como o João Tralhão, o Nuno Maurício, o Luís Nascimento: falávamos, debatíamos, ficávamos lá para os treinos a seguir. Era um meio aberto de aprendizagem.
A primeira época do Pedro no Benfica é também a primeira do Renato Sanches no clube, precisamente no escalão em que estava a treinar. Ele já se destacava? Já era aquele miúdo irreverente?
Já. Em dezembro o Renato é recrutado ao Águias da Musgueira. Era um atleta com uma qualidade muito boa, mas ainda a precisar de muitas regras. Era muito selvagem, no bom sentido, dentro de campo. O João Tralhão percebeu que ele ia ajudar muito a equipa na fase final, mas antes era necessária uma primeira fase de adaptação, com torneios com a equipa B na altura do Carnaval. Ele trouxe uma irreverência muito grande, aquele jogo de rua de que se fala que está a acabar e que já se notava que estava em declínio.
Notava muita padronização nos miúdos nos jogos que ia vendo já enquanto scout? Essa ausência do futebol de rua que dá características muito próprias a um jogador?
Sim. Na nossa infância, o jogar na rua era o normal. Mas hoje em dia também penso, enquanto pai, que a liberdade que eu tinha de estar na rua todo o dia a jogar, eu próprio não consigo oncebe-la às minhas filhas. Ou porque há mais insegurança, ou porque somos de uma geração que tem um maior acesso à informação do que antes, o que faz com que pensemos muito mais nos riscos e nos tornemos mais protetores. Mas, sim, notava-se essa falta do futebol de rua. A verdade é que também houve um crescimento da urbanização e passou a haver menos espaço para se jogar, fosse num jardim ou num campo de terra batida onde se usavam árvores, pedras ou mochilas para servirem de balizas. Onde eu cresci, na Madorna, o sítio onde jogava à bola é hoje um parque de estacionamento. O rinque debaixo da minha casa é hoje um jardim onde os cães vão passear. E depois vieram os jogos de computador, que agarraram ainda mais as crianças.
Isso combate-se?
No Benfica havia uma preocupação muito grande: no treino de quarta-feira, os treinadores quase não davam feedback. Deixavam que os miúdos se soltassem. Mas essa padronização de que falamos se calhar também foi um bocadinho culpa nossa, enquanto jovens treinadores. Na altura do boom do José Mourinho, na faculdade, toda a gente que estava a tirar o curso de Ciências do Desporto, com especialização ou não em treino de futebol, mesmo que fosse a área mais geral, havia muito aquela questão de olharmos para a periodização tática, para os fundamentos e, depois, isso tende a replicar-se nos treinos perante os jovens. Eu também pensava assim nos primeiros anos: «Ok, como é que nos vamos organizar para não sofrer golos?» Se calhar era um erro e o melhor seria deixá-los ser mais livres, decidirem por eles e não lhes castrar essa criatividade. Lembro-me, já enquanto coordenador de Lisboa ou da prospeção, de ver um Benfica-Sporting em sub-9 que acabou 0-0. Não me fez sentido: os miúdos não estavam ali a jogar 40 ou 50 minutos para que o jogo acabasse 0-0. Na rua jogávamos para que os jogos acabassem 15-15. Mas ali havia uma preocupação muito grande pela organização defensiva. Se calhar isso levou a esta padronização, mas por outro lado também fez com que hoje tenhamos jogadores portugueses muito ricos a nível tático.
Como foram os primeiros tempos na prospeção da formação do Benfica?
Era prospetor no distrito de Lisboa e nesse ano conciliava esse trabalho com o de treinador-adjunto dos sub-15 no Oeiras. E ainda dava aulas. A vida do recém-licenciado era muito isso: dava aulas de manhã num colégio em Odivelas. Depois, dava aulas à tarde em Tires. Depois, saía, ia para os treinos do Oeiras. E ao fim de semana, além do meu jogo no Oeiras, estava o sábado todo a ver jogos para o Benfica. Havia também a preocupação de também ver jogos perto de casa: Tires, Fontaínhas, Carcavelos, Cascais, Torre, Porto Salvo, Talaíde… Mas ia-se a todo o distrito de Lisboa quando era necessário.
Começou a perceber rapidamente que a sua carreira passaria por aí?
Sim. Eu comecei a gostar bastante do scouting, do recrutamento. Na altura muito focado nos escalões mais jovens, mas era interessante perceber as diferenças que existiam entre os atletas mais velhos e os mais novos. Era giro ver as habilidades e as aptidões dos miúdos. O que faziam, porque é que faziam, porque é que tinham sucesso. No ano seguinte, com o regresso do Bruno Maruta ao Benfica, há ali uma reformulação na prospeção e sou convidado para ser o coordenador da prospeção no distrito de Lisboa, a partir daí a tempo inteiro. E abdiquei de tudo o resto. No meu quarto ano estava a trabalhar a 100 por cento no Benfica.
Em que consistiu essa reformulação na prospeção?
Houve um investimento grande. Enquanto coordenador de Lisboa, comecei a trabalhar a tempo inteiro no Benfica e começámos a ter um maior número de prospetores. Criou-se uma área especializada para os traquinas e os petizes. Houve um investimento em mais recursos humanos para se cobrir uma área maior em Portugal.
Na altura, o Seixal estava praticamente a começar e o Sporting era considerado ainda o clube referência na prospeção e formação em Portugal. Sentia-se dentro do Benfica que ainda havia uma grande distância para o maior rival?
Eu estive um ano como coordenador de Lisboa e no ano seguinte acabo por passar a coordenador do departamento de prospeção do futebol de formação. E nesse ano sentia claramente que o Sporting tinha uma experiência maior a nível de anos, que estava há mais tempo a trabalhar nessa área e que tinha uma rede de contactos maior. E, mesmo já com um grande investimento em termos de recursos humanos qualificados para aumentar o número de olhos que observavam os jogos, por muito que a informação nos chegasse e que fossemos os primeiros a detetar os jogadores, sentia-se que quando se ia falar com um pai a dizer que gostávamos do filho dele e que queríamos convidá-lo para ir a um treino de captação, a um treino integrado ou apenas ficar com o contacto para meter na base de dados para uma eventual abordagem futura, muitas vezes isso não chegava. Os pais diziam: «Ok, ok. Vou ligar ao Sporting, porque se vocês gostam, o Sporting também gostará.»
«Os anos do mister Rui Vitória foram anos em que as portas estiveram muito abertas. E aí é muito fácil abordar-se um pai»
Historicamente, o Sporting também dava mais oportunidades aos jovens da formação…
Também por isso. E assumimos isso como um desafio para crescermos. «Irreverência», «ambição» e «inconformismo» eram palavras muito faladas no Benfica. Nós estávamos inconformados e isso era algo geral de cima a baixo. Tínhamos de ser ambiciosos e inconformados para darmos a volta à situação e criou-se uma equipa de trabalho que conseguiu rapidamente dar a volta à situação para que depois nos tornássemos nós, Benfica, a referência. Claro que isso também foi alavancado pelo facto de haver espaço na equipa principal. Os anos do mister Rui Vitória foram anos em que as portas estiveram muito abertas. E aí é muito fácil abordar-se um pai, explicar-se um projeto desportivo a longo-prazo e ele perceber que o projeto desportivo existe mesmo.
Em que momento é que sentiu o Benfica se tinha tornado na principal referência também ao nível da prospeção e que aquelas dificuldades dos primeiros anos após a reestruturação do scouting já não existiam?
Acho que isso foi sucedendo. Não consigo precisar no tempo, mas terá sido um trabalho de dois/três anos. Mas durante os sete anos em que tive a sorte de poder ser o coordenador do departamento de prospeção do futebol de formação do Benfica, o que fizemos, usando as palavras que referi acima, foi pensar no que poderíamos fazer de diferente no ano seguinte. Criar dificuldades a nós próprios para termos aquela cenourinha à frente do nariz para continuarmos a trabalhar mais.
«Se somos contactados por um pai que diz que o Sporting tinha abordado o filho, estava ali uma «red flag» que tínhamos claramente de alterar»
Por exemplo…
Num dos últimos anos, lembro-me bem de um dos jogadores que contratámos e em que foi o pai que ligou a dizer que o Sporting tinha abordado o filho. Nós fechámos o jogador, mas fomos analisar o processo, como sempre. Produto final: competente. Processo: errado.
Como assim?
Se somos contactados por um pai que diz que o Sporting tinha abordado o filho, estava ali uma «red flag» que tínhamos claramente de alterar. Questionámo-nos o que é que tinha falhado para não termos sido os primeiros a detetar o jogador. A questão de sermos os primeiros a detetar era muito importante. O tempo entre a identificação, a seleção do jogador e a contratação era muito rápido. Sabíamos que, se queimássemos tempo aí, íamos apresentar o projeto desportivo antes dos outros. E as bases estavam claramente bem definidas. Quando o Armando Jorge [Carneiro] entra como diretor-geral do futebol de formação, uma das primeiras reuniões que tivemos foi no sentido de definir que projeto desportivo íamos apresentar aos jogadores. Perceber o que acontecia se um jogador se destacasse numa determinada idade, a possibilidade de ter contrato de formação, contrato profissional, as portas da equipa A. Havia esses pequenos prémios ao longo do caminho e isso era aliado a profissionais muito competentes. Era fácil dizer: vais ser treinado pelo Luís Nascimento, pelo Renato Paiva, pelo Luís Araújo, pelo Filipe Coelho. Isso era muito importante. O facto de o Benfica ter naquele momento, como ainda tem, profissionais muito competentes fazia com que fosse fácil recrutar. Podemos apresentar um projeto desportivo, mas as pessoas querem nomes, querem caras. Era isso, o facto de os jogadores estarem a chegar à equipa principal, o facto de já dominarmos nas seleções nacionais e também o aparecimento da Benfica TV. O facto de o pai saber que, estando mais ou menos perto, podia ver ao sábado de manhã o filho a jogar nos Pupilos do Exército era muito importante. A Benfica TV foi uma ferramenta muito importante também para o processo de contratação. E o Benfica Campus, claro. Aparece após a academia do Sporting e, logicamente, por aparecer depois, aparecer melhor, mais moderno. Era algo que também era muito aliciante para os pais.
Esteve quase dez anos na prospeção das camadas jovens do Benfica, sete à frente do departamento de prospeção. Sem falsas modéstias, quais foram as suas grandes descobertas?
Eu não fiz nada sozinho e a minha equipa de scouting estava dentro do Benfica. Por isso, são as descobertas do Benfica. Desde a base da formação até um jogador se estrear na equipa principal, há muitos intervenientes com um papel muito importante. Em muitos casos mais importante do que o nosso, que identificámos o jogador. Logicamente que em sete anos em que estive como coordenador, há um número muito elevado de atletas. Nós nunca fomos muito de dizer que este ou aquele são a nossa bandeira. Isso não existe. O que existe é: há um jogador que nós contratamos e, depois, há um processo feito na formação que permite que os jogadores possam continuar a evoluir. E há portas abertas no futebol profissional que permitem que os jogadores tenham espaço para lá chegar. Não faz qualquer sentido eu dizer que contratei um jogador com sete anos e que, se não fosse eu, ele não chegava à equipa principal 12 anos depois.
Pedro Ferreira cumpre os primeiros dias de uma ligação de três épocas ao Nottingham Forest, onde vai chefiar o recrutamento da equipa da Premier League que é treinada por Nuno Espírito Santo.
Para trás ficam 17 anos de ligação profissional ao Benfica e muitos mais de conexão sentimental.
Aos 41 anos, o homem que chefiou o departamento de scouting do futebol profissional dos encarnados nas últimas cinco épocas e meia e que, antes disso, liderou a prospeção da formação do clube ao longo de sete anos, admite que estava na altura de sair da zona de conforto e de perceber que há vida para lá do clube pelo qual se confessa apaixonado. E de crescer enquanto profissional para, que sabe, um dia voltar a «casa».
Pedro Ferreira cumpre os primeiros dias de uma ligação de três épocas ao Nottingham Forest, onde vai chefiar o recrutamento da equipa da Premier League que é treinada por Nuno Espírito Santo.
Para trás ficam 17 anos de ligação profissional ao Benfica e muitos mais de conexão sentimental.
Aos 41 anos, o homem que chefiou o departamento de scouting do futebol profissional dos encarnados nas últimas cinco épocas e meia e que, antes disso, liderou a prospeção da formação do clube ao longo de sete anos, admite que estava na altura de sair da zona de conforto e de perceber que há vida para lá do clube pelo qual se confessa apaixonado. E de crescer enquanto profissional para, que sabe, um dia voltar a «casa».
Desde a chegada em 2007, como adjunto de uma equipa de benjamins que tinha acabado de receber Renato Sanches, quando ainda era estudante e árbitro de futebol, à passagem para o departamento de prospeção e o caminho para ultrapassar os anos – ou décadas – de atraso em relação ao eterno rival Sporting e ajudar a fazer do Benfica uma referência também na prospeção de jovens talentos.
Pelo meio, foi um dos intervenientes na ida de João Félix do FC Porto para o Benfica em 2015, processo que recorda nesta parte da entrevista.
Em 2019, num período de «introspeção» no clube, passou a liderar o departamento de scouting do futebol profissional do clube, que desde então fez as três maiores vendas de sempre: de João Félix, de Enzo Fernández e de Darwin, todas com a contribuição dele e do seu – como lhe chama – «departamento de soluções», através da identificação talentos desde a formação até à elite.




Na última época, mais do que casos de sucesso, foram notícia os chamados «erros de casting» do Benfica no mercado. Jurásek, contratado por 14 milhões de euros para ser o substituto de Grimaldo, não resultou e nenhuma das opções para a frente do ataque fez esquecer Gonçalo Ramos enquanto a escassos quilómetros da Luz um outro avançado trazia fartura ao Sporting.
Pedro Ferreira – O João era um atleta que sempre se destacou desde muito jovem. Tinha características ímpares: era muito evoluído tecnicamente e cognitivamente a nível da decisão. A dada altura, por uma questão física, por algum atraso maturacional, tinha mais fragilidades e acabou por ter menos tempo de jogo no FC Porto. Para nós, era óbvio que teria de ser obrigatório colocarmos pelos menos uma dúvida na cabeça dos pais: «Ok, ele não está a jogar no FC Porto, mas tem aqui a possibilidade de crescer num projeto desportivo que acreditamos que neste momento vai facilitar a evolução do João.»
«Era importante tirar pressão aos pais e dar-lhes, acima de tudo, soluções para todos os problemas que existiam na cabeça deles»
E decidiu-se avançar…
Acho que era obrigatório apresentarmos ao pai do João o nosso projeto desportivo e, depois disso, fazê-lo acreditar que aquilo era verdade e que ele iria ter espaço. Que tínhamos um meio para ajudar o João a crescer e a atingir o sonho que tinha, que era ser jogador de futebol profissional. Foi muito isso: desafiar a família a confiar no Benfica. É preciso também lembrar que o próprio Renato Paiva criou ali um ambiente muito importante, junto de uma geração de 99 com jogadores muito bons, para potenciar as qualidades do João Félix.
Certo.
E também tínhamos de pensar no todo, na família. Sabendo que o Hugo, o irmão mais novo, era o capitão dos sub-11 do FC Porto, poderia ser claramente difícil para ele continuar lá. E, se ele quisesse sair, tínhamos o projeto do CFT de Viseu como algo para ele evoluir, sabendo no ano seguinte, na passagem de sub-12 para sub-13, quando os atletas podem ir viver para o Benfica Campus, teríamos a capacidade de o absorver. Era importante tirar pressão aos pais e dar-lhes, acima de tudo, soluções para todos os problemas que existiam na cabeça deles.
E deram ao João a garantia de que aquilo que ele estava a viver no FC Porto não sucederia no Benfica? O pouco tempo de jogo?
Ninguém iria vender algo que não iria acontecer. O Benfica também gostava de jogadores com as características do João e tinha treinadores capazes de os fazer evoluir. Na nossa equipa de 99 havia jogadores com características semelhantes. Olhando para estes casos, era fácil ele perceber que havia confiança do Benfica e que ele não deixaria de jogar por ser mais ou menos forte fisicamente. Noutras realidades, o modelo de jogador poderia ser diferente. Mas na nossa era um modelo de jogador claramente apetecível.
Em 2019, num período de «introspeção» no clube, passou a liderar o departamento de scouting do futebol profissional do clube, que desde então fez as três maiores vendas de sempre: de João Félix, de Enzo Fernández e de Darwin, todas com a contribuição dele e do seu – como lhe chama – «departamento de soluções», através da identificação talentos desde a formação até à elite.
Na última época, mais do que casos de sucesso, foram notícia os chamados «erros de casting» do Benfica no mercado. Jurásek, contratado por 14 milhões de euros para ser o substituto de Grimaldo, não resultou e nenhuma das opções para a frente do ataque fez esquecer Gonçalo Ramos enquanto a escassos quilómetros da Luz um outro avançado trazia fartura ao Sporting.
Maisfutebol – Foi fácil mudar o chip quando passou a ser scout do futebol profissional do Benfica em 2018? Porque, ainda que os clubes portugueses contratem no futebol sénior para depois venderem, aqui o resultado desportivo é o que mais importa.
Pedro Ferreira – Sim. Quando contratamos um sub-19, um sub-18 ou um sub-17, ele já está muito próximo do futebol profissional e olha-se muito para o rendimento e não só para o potencial. Nos escalões mais jovens, o potencial é muito mais importante do que o rendimento e à medida que vão crescendo, isso começa a equiparar-se. Mas ninguém quer um jogador sub-19 que só tenha potencial e que não tenha rendimento e não consiga responder às exigências do jogo. Na equipa principal é um pouco isso, sabendo-se que a margem de erro é muito menor. Ainda que seja um jogador que possa ter potencial para crescer e que acreditemos que daqui a dois, três, quatro anos, possa ser melhor, já tem de ter algo que o faça responder neste momento. Ou então temos de perceber que temos de ter um contexto que vai potenciar este jogador, mesmo jogando menos. Mas, falando no geral, as regras do jogo são as mesmas. Temos de apresentar soluções para aquilo que nos pedem. Não senti que ia ser difícil. Já tínhamos uma experiência grande de jogadores a chegarem à equipa principal, já conseguíamos ter conhecimento de causa daquilo que fazíamos e acabou por ser uma passagem natural, sabendo, claro, que ia passar a responder muito mais ao hoje do que ao amanhã.
O José Boto deixou a liderança do scouting do Benfica em 2018. O Pedro assume logo nessa altura?
Não. Eu passo para scout do futebol profissional em junho e tenho logo o Europeu sub-19, em que vou com o Mauro [Mouralinho] e Portugal até é campeão com essa geração de 99 com o Jota e o Trincão, que foram dois jogadores que se destacaram bastante, mas também havia Florentino, Gedson e o Félix não estava. É o Europeu em que o Haaland, ainda sub-18, participa pela Noruega e joga contra Portugal. Essa foi a minha primeira experiência e depois fiquei muito focado na Europa, até que em janeiro de 2019, numa altura em que está num processo de introspeção, o Benfica acaba por fazer algo que não tem sido muito comum, que é mudar de treinador a meio do campeonato.
A saída de Rui Vitória e a entrada de Bruno Lage.
Nesse momento de reflexão, com uma mudança que foi a subida do Bruno Lage para a equipa principal – que era alguém com passado de formação – foi feita uma reformulação do scouting no sentido de dotá-lo de mais gente e de fazer com que tivesse uma estrutura mais hierarquizada. E foi-me colocado o desafio de assumir o departamento de scouting do futebol profissional. Criámos uma equipa de trabalho com o Rui Costa, o diretor-desportivo, e o Tiago Pinto, o diretor-geral. E estivemos ali durante uns meses a partir pedra, a perceber o que íamos fazer, como íamos crescer, potenciar o que já fazíamos bem feito e o que podíamos acrescentar a nível de perfil de scout para começarmos a época seguinte a 100 por cento nesse novo modelo.
O que mais mudou?
Acima de tudo, naquele momento os scouts estavam no Estádio da Luz. Isso fez-me alguma confusão na altura. Naqueles anos todos anteriores sempre tinha estado no Benfica Campus. À hora do almoço cruzava-me com a equipa técnica, jogadores e diretores da equipa principal. Em junho passo para o scouting da equipa principal e fui trabalhar para o Estádio da Luz. Isso fazia-me alguma confusão.
Ser scout da equipa principal e estar fisicamente mais longe dela do que antes de o ser…
Ok, estávamos mais próximos da SAD e podíamos ser chamados a qualquer momento pelo presidente ou pelo diretor-desportivo, que também lá estava muitas vezes, ainda que passasse muito tempo no Benfica Campus com a equipa. Mas estávamos fisicamente mais longe da equipa. E, logo aí, levámos os scouts todos para o Benfica Campus, podendo reunir todos diariamente se necessário. E quatro pessoas naquele departamento era pouco. Tornámos o departamento mais profissional, com mais obrigações diárias, mais direitos, mais deveres, com relatórios e tudo inserido na base de dados. Trouxemos também uma pessoa para nos ajudar nas questões mais burocráticas, como as viagens, as marcações dos hotéis: o André Oliveira.
«Gyökeres estava na equipa sombra do scouting do Benfica»
Maisfutebol – Quando uma equipa muda de treinador, muda a ideia de jogo e o perfil de jogadores que se pretende. Quão desafiante é isso para um departamento de scouting?
Pedro Ferreira – É muito desafiante. E ainda bem, porque isso motiva e leva-nos a estar em constante reciclagem e reformulação de ideias para não pensarmos que as coisas só funcionam de uma forma. Há a ideia do clube, o modelo de jogo do clube e o modelo de jogador do clube, que no Benfica é claramente um jogador vencedor. Tudo isso é verdade, mas claramente que há depois o input de cada treinador. E nós tínhamos de olhar para o que o treinador fazia para tentar identificar jogadores que fossem ao encontro daquilo que era a sua ideia de jogo.
Portanto, jogadores que estavam altamente referenciados pelo scouting ontem, podem não ser válidos para hoje se o treinador for outro…
Podem não ser válidos. Não é que eles sejam bons ou maus, mas sim se correspondem àquilo que nos é pedido. A beleza do scouting não é os jogadores serem bons ou maus. Quando me perguntam se eu gosto de um determinado jogador, eu pergunto: «Gosto deste jogador para quê?» Não se contrata em função dos nossos gostos pessoais, mas em função daquilo que se pretende. E essa é a riqueza do scouting. O segredo é, acima de tudo, perceber que os jogadores são contratados para responder a algo. Não apenas porque são bons, mas sim porque têm transfer para aquilo que se pretende.
«Subi as escadas, chamei a minha equipa de trabalho e fomos automaticamente observar as equipa do mister Roger Schmidt. Olhar de forma massiva para o que fazia o seu Bayer Leverkusen, o seu RB Salzburgo e o seu PSV»
Fará sentido que o departamento de scouting seja um dos primeiros a ter conhecimento de quem é o próximo treinador do clube, para que possa debruçar-se sobre a ideia de jogo dele e seja identificado o perfil de jogador que ele privilegia para os diferentes setores…
E isso aconteceu de uma forma clara quando o Roger Schmidt chegou. O presidente Rui Costa chamou-me num dia à hora do almoço e disse-me: «Pedro, ainda é segredo, mas o mister Roger Schmidt vai ser o nosso treinador para o ano. Portanto, tenham isso em ideia.» Subi as escadas, chamei a minha equipa de trabalho e fomos automaticamente observar as equipa dele. Olhar de forma massiva para o que fazia o seu Bayer Leverkusen, o seu RB Salzburgo e o seu PSV. E isso foi óbvio para começarmos a identificar – antes de começarmos a falar com o treinador e a ter respostas no dia a dia, até porque ele continuava a treinar o PSV – aquilo que na nossa ideia era o padrão do Roger Schmidt. E havia jogadores que naquele momento estavam na equipa sombra como alvos prioritários e que deixaram de o ser. E outros em que se potenciou o interesse.
Equipa sombra é…?
Equipa sombra são jogadores que achamos que respondem àquilo que o Benfica quer. Um conjunto de cinco, seis, sete jogadores por posição que achamos que têm nível para jogar no Benfica. Naquele momento, a equipa sombra mais geral é uma equipa homogénea na qualidade e heterogénea nas características para responder aos tais perfis diferentes que nos podem vir a pedir. Porque podem estar a pedir-nos um perfil, mas o futebol é tão volátil que às vezes durante a época o treinador quer um perfil claramente disruptivo e temos de ter essas soluções. Mas depois temos uma equipa sombra mais reduzida, com jogadores mais «target», em função dos jogadores que se quer no momento. E houve jogadores que estavam naquele lote mais «target» e se podiam começar a negociar para as ideias de jogo que se pensava que iríamos ter que se mantiveram e houve outros que saíram, porque não iam ao encontro do que identificávamos. Na altura debatemos bastante com o Rui Pedro Braz: «Ok, o presidente passou-nos isto, estas são as ideias-chave da forma de jogar do mister Roger Schmidt, estes são os jogadores de que estávamos a falar, estes são os que podem ter maior transfer e estes menos. E, depois, foi muito o trabalho direto do Rui Pedro Braz com o mister Schmidt e a sua equipa técnica a propósito dos alvos que tínhamos, de quem achávamos que tinha maior transfer, entre eles alguns que já estavam num processo de contratação.
Nessa equipa sombra cabem também jogadores da formação do clube?
Nessa equipa sombra cabem jogadores de todo o Mundo, não jogadores da formação do clube. Mas havia um conhecimento claro dos jogadores da formação.
Com qual dos treinadores houve maior comunhão de ideias e uma maior aceitação dos jogadores que o scouting identificava e recomendava?
Sinceramente, não consigo responder à questão dizendo um nome. Mas se não houvesse comunhão de ideias, o problema era nosso. Nós temos de fazer perguntas. Não faz sentido estarmos a incomodar todos os dias, mas no departamento de scouting olhávamos muito para isto e chateávamos os diretores-gerais, os diretores-desportivos e os presidentes para tentar perceber o que se pretendia. E tentávamos sempre ir ao encontro disso. Houve coisas muito bem feitas com todos os treinadores. Falando e percebendo o que se quer, é mais fácil. Mas é lógico que há jogadores que entram e que desiludem toda a gente, como outros que entram e que surpreendem pela positiva. E esses exemplos devem levar-nos a trabalhar melhor: «Porque é que este correu mal? Porque é que não o conhecíamos bem? Se calhar falhámos aqui nesta questão da personalidade.
«O departamento de scouting é um departamento de soluções: se nos colocamos contra quem quer que seja, seremos um departamento de problemas. E assim não vale a pena lá estarmos»
Mas um scout só se pode desiludir com um jogador que é contratado e que fazia parte da sua shortlist, não?
Há duas portas de entrada na equipa principal. O jogador que entra através de um processo em que é identificado e selecionado pelo scouting, sendo posto depois à consideração da direção e da equipa técnica, cabendo-lhes depois essa decisão. Eu costumo sempre dizer que tentamos influenciar a decisão com o nosso trabalho e cabe depois às pessoas decidir.
Segunda porta de entrada…
Outra via, que eram os jogadores que podiam ser indicados pela própria direção e pelo próprio treinador. E era-nos pedida a opinião. Nós desde o princípio que dissemos que também queríamos opinar e era-nos pedida a opinião. Depois, havia um processo normal que levava a uma comunhão de ideias acerca do que aquele jogador podia acrescentar dentro do que estava a ser pedido, ou podia haver uma ideia diferente, em que uns achavam que era mais por aqui do que por ali, ou uns achavam que respondia àquilo que era pedido e outros não. Independentemente de o scout dizer mais sim ou menos sim, a partir do momento em que o jogador era contratado, todos queríamos que ele tivesse sucesso. Passava a ser jogador do Benfica e não interessava se tinha entrado por A, B, C ou D. Trabalhamos sempre como um todo para uma instituição.
Mas como é que se gere o ambiente quando há uma grande divergência de opiniões relativamente a algum jogador? Por exemplo, num cenário em que um jogador desaconselhado pelo scouting é a escolha do treinador? É normal isso acontecer?
É normal isso acontecer, sim. Até porque não temos o dom da razão. No momento, o que se faz é tentarmos chegar a um consenso todos juntos. Lida-se com isso de uma forma normal. Estamos aqui para tomar decisões e aconteceram situações assim. Até de atletas que tiveram sucesso e que nós naquele momento achávamos que poderiam não ter sucesso. Muitas vezes percebemos que até estávamos a pensar mal e as pessoas que decidem acima de nós estavam a pensar muito melhor do que nós. Isso nunca pode ser celeuma. O departamento de scouting é um departamento de soluções: se nos colocamos contra quem quer que seja, seremos um departamento de problemas. E assim não vale a pena lá estarmos.
Seria sempre uma luta condenada ao fracasso dizer a um treinador que um jogador não encaixa na ideia de jogo dele, não?
Obviamente. Até porque a ideia de jogo é do próprio treinador. Nós estamos ali para dizer que a nossa leitura poderá ser uma, mas depois cabe a ele. E o treinador opina sobre os jogadores praticamente todos. Ele também não vai querer contratar um jogador para não ter sucesso: o treinador quer ganhar, tal como todos no clube. E o treinador é aquele cujo rosto é mais conhecido e aquele que sente mais pressão. E não quer errar. Por isso é que eu costumo dizer: as decisões devem ser assumidas como sendo de todos, para facilitar a vida a toda a gente.
Esta época falou-se muito de escolhas erradas do Benfica na composição do plantel. O próprio Rui Costa reconheceu que houve vários jogadores que não deram aquilo que se esperava. O Jurásek será o caso mais flagrante, até porque custou 14 milhões de euros e acabou por ser emprestado em janeiro. O próprio Roger Schmidt nunca negou que foi uma escolha dele. Era um jogador que estava referenciado pelo scouting?
O scouting conhecia todo e qualquer jogador que entrou no Benfica. O nosso dia a dia não é só identificar jogadores para jogar no Benfica. É também dizer que conhecemos, que temos um trabalho já feito sobre esse jogador e que ele tem determinadas características. Fazemos um trabalho global e temos de conhecer todos os jogadores porque somos profissionais da área.
Também para não serem surpreendidos quando o treinador vos apresenta um nome…
Claro. No caso do Jurásek, a Chéquia era um campeonato que acompanhávamos com muito afinco.
No ano anterior o Alexander Bah tinha sido contratado à mesma equipa, inclusive.
Exatamente. Logo por aí, logicamente que o conhecíamos. Mas eu costumo dizer: «Não foi o Roger Schmidt que contratou o Jurásek. Foi o Benfica. Ponto final. Tal como, usando um caso de sucesso, contratou o Enzo. Num acertou de uma forma rápida; noutro, até ao momento errou e vamos ver como será o futuro. E até ao momento errou porque ele não respondeu logo naquele tempo. O Jurásek vinha para substituir o Grimaldo e, provavelmente, era para jogar. Mas há contratações que são feitas pensando que o jogador vai responder daqui a dois anos, dois anos e meio, um ano ou um ano e meio. O próprio Grimaldo não começou logo a render quando chegou ao Benfica.
«Jurásek foi umaa escolha do Benfica. Estávamos todos no mesmo barco»
Mas quando se paga tanto por um jogador, é porque se quer rendimento imediato.
Depende. Tirando o ónus só do Jurásek, pode-se pagar muito porque naquele momento o muito é 18M e daqui a dois anos muito é 70M. Se acreditarmos num jogador, é tentar pagar aquilo que achamos que é razoável. Factualmente: o primeiro ano do Jurásek no Benfica não foi positivo e ele foi emprestado. Vamos ver o que o futuro dirá.
Mas sendo uma escolha óbvia do treinador Roger Schmidt, ele não estava numa shortlist do scouting, numa equipa sombra?
Ele foi uma escolha do Benfica. O Benfica contratou-o e estávamos todos no mesmo barco.
Tenho de insistir e vou citar uma passagem do livro «Scouting – Tudo sobre a observação e análise de jogadores», escrito pelo Pedro e pelo João Ferreira. «Apesar de sabermos que poderá haver muitos fatores que façam com que determinado jogador não se adapte a uma nova realidade, o que não podemos é correr o risco de ele não se adaptar por questões meramente técnicas.» Foi por questões técnicas que o Jurásek não estava referenciado pelo scouting do Benfica?
O Jurásek estava referenciado pelo Benfica. Nós referenciamos imensos jogadores, milhares.
Diz «referenciado» no sentido de o conhecerem. Mas não era visto pelo scouting como um alvo?
Os alvos do Benfica têm muito a ver com aquilo que nos pedem. Temos uma panóplia enorme de jogadores referenciados e depois, em função do que nos pedem, nós damos soluções. Se o Jurásek era ou não [um alvo], acho que isso neste momento é pouco importante. Se o Jurásek é uma boa ou má contratação, o que garanto é que todas as contratações são avaliadas pelo Benfica e no fim de tudo é feita a análise ou o «enterro», como lhe costumo chamar, da contratação para se perceber o que é que aconteceu, porque é que correu mal, seja pela personalidade ou pelo que quer que seja. Tudo é assumido e analisado posteriormente e isso é, para mim, muito mais importante do que dizer se o jogador estava ou não referenciado pelo scouting ou se o treinador queria ou não. Isso são pormenores que servem para vender jornais. O importante é perceber: acertámos ou não, errámos ou não? E vamos analisar o porquê. O que os adeptos querem é que se acerte mais amanhã.
«Tanto Gyökeres como Jurásek estava referenciados pelo scouting do Benfica»
Ao longo desta época falou-se muito de jogadores contratados pelo Benfica que não tiveram sucesso, mas também se falou de jogadores que não foram contratados. Por exemplo, chegou a ser noticiado que Gyökeres estava referenciado pelo scouting do Benfica. Estava bem referenciado?
Tanto Gyökeres como o Jurásek estavam referenciados pelo scouting do Benfica e o presidente falou há bem pouco tempo sobre isso. Como disse, nós referenciamos muitos atletas. Depois, lá está: de acordo com aquilo que nos é pedido, se o perfil é um perfil de um avançado rápido, potente, de ataque à profundidade, de um jogador móvel que possa jogar nos corredores, o Gyökeres entra nesse perfil; se o perfil é diferente, já não podemos identificar o Gyökeres.
O jornal Record chegou a noticiar que foi observado pelo scouting do Benfica em pelo menos 30 jogos…
Isso acabou por ser público. Mas é importante explicar que quando se diz que um jogador é observado em 30 jogos, pode não se estar a querer dizer que vimos 30 jogos diferentes ou ao vivo. Vamos supor que somos oito pessoas a ver jogos: se cada um viu cinco jogos do Gyökeres, do Manuel, do António ou do João, estão lá 40 jogos. Mas podem ter sido vistos 12 ou 13 jogos diferentes. O facto de haver 40 relatórios de um jogador não quer dizer que se viram 40 jogos diferentes. Quer dizer que há 40 relatórios feitos de um jogador. Muitas das vezes, a opinião de scouts diferentes sobre o mesmo jogo é muito importante. Outras vezes vemos o jogo ao mesmo tempo, seja ao vivo ou em vídeo no Benfica Campus. Era muito normal: «O que é que tu viste do jogador? Pontos fortes? Pontos fracos? Ok, eu vi isto, isto e isto. Vamos agora ver em conjunto dois, três, quatro scouts e vais-me dizer onde é que viste esses pontos fortes e eu digo-te onde vi os meus. O interessante era chegarmos ao final com um processo robusto e fundamentado. Podemos ver muitos jogos de um jogador e, no fim, não tem interesse.
Mas isso não será mais a exceção à regra?
Nem sempre. A ideia é tentar ver muito. Às vezes há uma oportunidade de negócio de um jogador que está muito próximo de outro clube e temos de tomar uma decisão, o que nos obriga a ver muito sobre ele. Se eu olhasse agora, antes de ter saído, para aquilo que foi a última época e os jogadores com mais relatórios, uns constavam da equipa sombra e outros não. Casos práticos: um scout, dentro do seu trabalho diário, viu muitas vezes um jogador e sente que está a destacar-se, mas chega a um momento em que quer a opinião de um colega, ou porque gostou do jogador, ou porque está com algumas dúvidas. O colega vai ver também. Se cada um vir oito jogos, estão ali muitos relatórios. Temos de ter muito para chegar a uma conclusão.




Gyökeres estava na «equipa sombra» do scouting do Benfica?
Sim, o Gyökeres estava na equipa sombra.
O mesmo jornal que escreveu que ele foi observado em 30 jogos disse também que Roger Schmidt preferiu o Casper Tengstedt na altura. O que pode dizer-nos em relação a isso?
Que o Benfica contratou o Tengstedt e não o Gyökeres.
O Tengstedt, tal como o Gyökeres, estava referenciado?
Sim, sim.
E o scouting do Benfica viu 30 jogos do Tengstedt?
Não sei responder quantos jogos vimos, mas vimos muitos jogos dele. Era alguém que se destacava no Rosenborg.
E o Pedro, ex-colaborador do Benfica, não acha que o Gyökeres teria sido uma boa contratação para o Benfica?
O Pedro, enquanto head of recruitment do Nottingham, vai contratar o Tengstedt, o Gyökeres, o Manuel ou o António? Depende sempre do que me estão a pedir. E não podemos estar a perder tempo com o que já passou.
Mas foi pedido ao scouting um jogador com as características do Tengstedt?
Dentro da equipa sombra, eram sempre pedidas ao scouting características diferentes. E, depois, a dada altura, quando se avaliava avançados, como se avaliou naquele momento, foram identificados vários perfis e na altura da decisão o Benfica decidiu contratar o Casper Tengstedt.
«Sucesso de Gyökeres no Sporting? Não há transferes. O modelo de jogo do Sporting, do FC Porto, do Sp. Braga ou do V. Guimarães é igual ao do Benfica?»
Não acaba por ser frustrante olhar para o sucesso do vizinho do lado, sentindo que a história podia ter sido radicalmente diferente?
Vou dizer claramente: nós olhamos para toda a gente, mas não há transferes. O modelo de jogo do Sporting, do FC Porto, do Sp. Braga ou do V. Guimarães é igual ao do Benfica? A riqueza do scouting no profissional é eu poder estar ao lado de um elemento de outro clube, a ver o mesmo jogo e estarmos a olhar de forma diferente para o mesmo jogador. Porque eu estou a olhar para o que se quer no meu modelo de jogo e ele para o modelo de jogo da equipa dele. Pode ter transfer para ambos, para nenhum ou para apenas um. Não é fácil dizer se um jogador que estava no Benfica teria mais ou menos sucesso no Sporting. Ou que o Enzo, usando um grande exemplo, teria menos ou mais sucesso se estivesse no Sporting.
Por falar no Enzo Fernández, ele e também o Darwin foram duas das três vendas mais caras da história do Benfica. A outra é o João Félix e curiosamente o Pedro tem relação com as três. Eram jogadores que estavam altamente referenciados?
Sim. Nós somos obrigado a conhecer os jogadores todos. O que eu disse do João, posso dizer do Darwin e do Enzo. Mas o que nunca fizemos foi colocarmo-nos em bicos de pés e dizer: «Quando se apresentou o projeto desportivo ao João Félix, sabíamos que daqui a «xis» anos ele ia ser vendido por 126 milhões.» Mas também é preciso dar muito mérito naquele momento a Rui Costa, Luís Filipe Vieira e a Jorge Jesus por perceberem que o Darwin vinha de uma II Liga espanhola… E atenção que nós já o conhecíamos da época anterior, quando ele estava no Peñarol, mas não houve, se calhar, a certeza no clube se deveríamos investir, embora nós, no scouting, até gostássemos muito dele. Optou por perceber-se qual era o passo seguinte e ver se depois se justificava investir, mesmo que fosse por um valor alto, mas ele ia potenciar-se. Se pensarmos um bocadinho nisto, o Darwin é, se calhar, o único jogador avançado do Benfica nos últimos anos que faz mais do que uma época. E a primeira época não é assim tão boa. E curiosamente até explode com o mister Veríssimo. Aprendeu claramente muito com o mister Jorge Jesus, que apostava e investia muito no Darwin e deu-lhe muitas ferramentas para melhorar.
Quem olhava de fora, via muito potencial em Darwin, mas também lhe identificava lacunas no conhecimento do jogo. Esse é o caso em que o scout tem de olhar para o potencial futuro, quase como se estivesse a avaliar um jogador para a formação?
Tirando algumas exceções, para um jogador muito rápido e potente, como é o Darwin, não é fácil decidir tão bem como um jogador que tem mais tempo para o fazer. Isto tem muito a ver com tempo: quando estamos a conduzir um carro e a fazer uma manobra de estacionamento, se a fizermos mais rápido, não conseguimos estacionar tão bem como se a fizermos mais devagar, em que temos mais tempo para decidir e executar. E é um bocadinho isso nesse tipo de jogadores. São poucos os jogadores muito velozes e que decidem muito bem com a velocidade de um Darwin. O importante era, como em todos os jogadores, perceber: o Darwin tinha muitas virtudes e algumas lacunas. «Vamos então potenciar o nosso modelo e perceber que ele vai ser potenciado dentro do modelo de jogo. E vamos então trabalhar para que as virtudes sejam mais facilmente observáveis e escondendo um bocadinho as lacunas.» Os modelos de jogo também servem para esconder lacunas e potenciar virtudes dos jogadores. Esse foi um caso bem feito, tal como o do Enzo. Ele foi identificado e contratado, mas não podemos esquecer também que o mister Roger Schmidt recebeu-o e apostou nele. E os colegas também apostaram nele, identificando-lhe qualidade e personalidade para chegar e assumir-se. Tem de haver uma simbiose de muitas pessoas: da direção e das pessoas no Benfica que colocam dinheiro acreditando no que nós inicialmente escrevemos.
Porque é que entende que o Darwin explode com o Nélson Veríssimo e não mais cedo com o Jorge Jesus, que foi quem o recebeu no Benfica? Por causa de um modelo de jogo mais defensivo e que ia mais ao encontro das características do jogador, com mais espaço para as transições?
Também. Isso acontece num momento de Liga dos Campeões em que o Nélson adaptou o modelo de jogo às características que tinha dos jogadores e dos adversários que íamos encontrar. E isso fez com que o Darwin tivesse muito sucesso com muito espaço para atacar, usando a sua potência, explosão e velocidade.
Encaixaria num modelo de uma equipa mais de posse como é o caso do Benfica de Roger Schmidt?
Poderia encaixar se se criassem situações para ele exponenciar as suas mais-valias. Se eu acho que ele precisa de mais espaço? Acho que sim. Acho que é um jogador mais talhado para esses momentos de ataque à profundidade. Se a tomada de decisão não é a sua grande virtude, também acho que sim. Mas ele foi para um clube que vai ao encontro das suas características: o modelo de jogo do Klopp era um modelo de jogo em que o ataque à profundidade era importante.
O trabalho de um departamento de scouting de futebol profissional passa também por olhar para dentro? Por exemplo: o treinador querer um defesa ou um médio com determinadas características e identificarem em casa os jogadores que preencham esses requisitos?
Sim. Cabe ao scouting, ao departamento de formação, aos diretores e aos presidentes terem conhecimento do que existe em casa. Mas, respondendo ao scouting, coube e caberá sempre reconhecer aquilo que temos em casa e perceber que um determinado jogador pode ajudar. O scouting de futebol profissional tem de conhecer obrigatoriamente equipas da formação, até para compararmos quando estamos a ver jogadores no estrangeiro. Temos de ter um conhecimento grande das equipas a partir dos sub-17. E é ainda mais obrigatório termos um conhecimento muito grande do que temos em casa, com a vantagem de ainda conhecermos a personalidade do jogador, o ser humano.
Foi o que aconteceu com António Silva e João Neves, os casos mais recentes de sucesso de jovens vindos da formação? Perceberam que não era necessário irem ao mercado para preencherem um lugar?
Sim. Olhando para os dois casos, importa perceber que surgiu a oportunidade, havia espaço quer para o António, quer para o João, para poderem ser chamados aos treinos.
E o scouting tem influência nessas chamadas aos treinos, alertando para a existência de um determinado jogador da formação que entende estar pronto?
No momento do dia a dia de treino, não. Mas, quando se perspetiva a época seguinte e os atletas que podem treinar na pré-época, sim: aí, era-nos pedida a opinião. Mas claro que vamos dando inputs.
«Parece-me difícil o Nottingham contratar jogadores ao Benfica neste momento»
Maisfutebol – Rui Costa disse recentemente que as várias saídas do departamento de scouting do Benfica eram sinal de que está a ser feito um bom trabalho e não o contrário.
Pedro Ferreira – Concordo a 100 por cento. Quando reformulámos e idealizámos uma nova fase do departamento de scouting, foi pensado por todos identificar bem os recursos humanos. Nesse momento, todos os recursos humanos que entraram no departamento de scouting do futebol profissional estiveram numa entrevista em que estava eu, o Rui Costa e o Tiago Pinto. Quando o Tomás Amaral, o Joaquim Pinto e o Gonçalo Bexiga entram, mesmo que já estivessem dentro do clube, quisemos ter ali um momento para se explicar aquilo que queria ser feito. E, da mesma forma que formamos jogadores e treinadores, também queremos formar scouts, dando-lhes condições como nos deram ao nível de recursos espaciais, informação para evoluírem e apoio. E isso aconteceu: enquanto líder, eu tinha de ser também o treinador, o formador, sabendo que eles estavam a ser formados para que amanhã pudessem um dia, por exemplo, substituir-me ou serem soluções noutros clubes, como foram. É um orgulho muito grande ver o Mauro Mouralinho sair para chief-scout do Marítimo e estar neste momento a trabalhar como scout no Atlético Madrid; o Gonçalo Bexiga foi idealizar um departamento de scouting no Al Ain [n.d.r.: atual campeão asiático] e teve ali momentos em que assumiu uma função muito semelhante à de um diretor-desportivo; o Tomás Amaral sai para diretor-desportivo do Spartak Moscovo; o Joaquim Pinto sai para chief-scout do Spartak; o Carlos Silva, que entra para scout do Benfica, e sai para diretor-desportivo do Farense. E eu saio para head of recruitment do Nottingham Forest. Isso é perceber que o trabalho está a ser bem feito, obviamente. Eu gosto sempre de falar da saída do Tomás para que se perceba: ele passou por muitas fases de seleção no Spartak para ser diretor-desportivo. O scout do Benfica, em competição com outras dezenas de pessoas, é o escolhido pela competência. E isto alegra-nos bastante. Estamos a falar de saídas, mas houve muita gente que foi tendo muitos convites e que foi optando por ficar.
Isso aconteceu também com o Pedro ao longo destes anos?
Eu fui tendo muitos convites e outros elementos também tiveram. Mas optámos por continuar a crescer no Benfica. Agora, falando no meu caso, senti que era a altura certa, depois de 17 anos de ligação ao clube, de sair daquela que era também a minha zona de conforto. Foi isto, foi a Premier League e foi o Nottingham, que me apresentou um projeto muito aliciante. Os proprietários são muito ambiciosos e querem que o Nottingham possa voltar a ganhar algum troféu. Eu perceber que posso ajudar a que isto aconteça e o facto de trabalhar com o mister Nuno Espírito Santo e criar uma relação de confiança fez-me pensar que estava ali algo que ia fazer-me sair da minha zona de conforto, num país diferente e que ia obrigar-me a continuar a crescer e a usar outras ferramentas para eu continuar a crescer. Tenho 41 anos e também tenho expectativas para aquilo que é a minha carreira e sinto que a minha passagem para o Nottingham vai ajudar-me a crescer. Quem sabe se para daqui a alguns anos poder regressar a um Benfica da vida mais bem preparado, por exemplo. Isto foi falado cara a cara com o Rui Pedro Braz e o Rui Costa. É muito importante conhecer por dentro outras realidades. E chegou a altura de algo sobre o qual eu falava muito com colegas da área: por exemplo, com o Flávio [Costa], do Sporting, que trabalhou comigo no Benfica durante sete anos e que saiu para Estoril, Famalicão e Sporting; o João Gião, o Carlos Fernandes, que está no Sporting, o Filipe Coelho, que sai para o Estoril. Perceber que há vida para lá do Benfica e que nós, quando trabalhamos muitas vezes fora do clube pelo qual somos apaixonados, podemos trabalhar sem essa afinidade clubística…
«Vejo-me como diretor-desportivo daqui a uns anos. É um padrão normal da carreira, mas não sei se o vou ser»
É benfiquista de berço?
Sempre fui e sempre serei benfiquista. Eu acho que conseguia pensar mais com a cabeça do que com o coração, mas a verdade é que eu era e sou apaixonado pelo clube. E agora vou-me tornar apaixonado pelo Nottingham, sabendo que nada vai superar a paixão pelo Benfica, mas penso nisto como algo para me ajudar também a formar-me no sentido daquilo que eu ambiciono para o futuro. Acho que estarei muito mais bem preparado do que passando só pelo Benfica.
Acha que será um passo natural tornar-se um dia diretor-desportivo? É comum acontecer e aconteceu também com José Boto, seu antecessor no Benfica.
Exatamente. É um padrão muito normal de carreira. Não sei se o vou ser. Olho para isso como uma possibilidade, mas sou muito de viver o dia a dia. Até agora senti-me sempre muito motivado em tudo o que fiz, como estou a sentir-me agora nesta passagem para o Nottingham, com desafios completamente diferentes daqueles que tinha no clube e pensando muito na questão do grupo. Mas vejo-me como diretor-desportivo daqui a uns anos. Se vai acontecer? Vamos ver.
Mas este foi um passo fácil de dar ao fim de 17 anos num clube?
Não foi fácil. Fui tendo alguns convites e a verdade é que nunca consegui dar esse passo. Por aquilo que me prendia, pela ligação ao clube, pela ligação familiar, por ser alguém com muitas raízes fortes que me prendiam. Mas o Pedro Ferreira, aos 41 anos, com a vida que tem à sua volta, sentiu que estava preparado para dar esse passo. E foi um desafio que eu achei claramente muito aliciante: o Mr. Marinakis, o seu filho, o Miltiadis Marinakis e o George Syrianos criaram-me desafios e entenderam que o meu trabalho poderia acrescentar valor ao clube, permitindo-me também crescer e desenvolver as minhas competências. E isso é muito aliciante, além de trabalhar na Premier League com o Nuno Espírito Santo. Senti que estava na altura certa.
E a conversa com Rui Costa?
O processo foi muito simples, mas não foi fácil. Mas o momento de verbalizar a minha decisão e claramente dizer que estou a assumir perante toda a gente que o que eu quero é sair, é difícil. Em casa, perante a mulher, as filhas e a restante família, como perante o presidente, com quem já tinha uma relação de muitos anos no clube. Já não é só o presidente ou o ex-diretor desportivo a olhar para o seu diretor de scout, mas o Rui a olhar para o Pedro.
«Não saio porque não ganhámos, assim como não saí no ano passado só porque ganhámos. Isso não existe»
Ele tentou demovê-lo?
Acho que foi tudo muito claro e transparente. E os dois Ruis, o Rui Pedro Braz e o Rui Costa, perguntaram-me o que é que eu queria para a minha vida e o que é que eu achava que era o melhor. Ganhar mais era o menos importante, não era isso que estava em causa. E eles perceberam que o que eu ia ter fazia todo o sentido: um desafio diferente, trabalhar na Premier League, experienciar coisas que não experiencio aqui, continuar a minha evolução. E o próprio presidente disse-me uma coisa que era verdade: «Se quando recebeste convites tu comunicaste que não os aceitaste e agora estás a ponderar ir, é porque alguma coisa está diferente. Querendo ir, vamos ajudar-te a que o processo seja o mais simples e menos turbulento possível até para a equipa de trabalho.» E assim foi, tendo até havido uma preocupação grande em saber-se se estava tudo certo com o Nottingham. Eu só me via a sair do Benfica dessa forma.
Para que fique claro para quem nos lê: a saída do Pedro do Benfica não teve qualquer relação com um possível desgaste provocado pela má época desportiva?
Não. A minha saída tem a ver com os meus 17 anos no Benfica. Com tudo o que eu fiz, com tudo o que fui atingindo e crescendo, senti que precisava de um desafio diferente. Claramente! Agora, não saio porque não ganhámos, assim como não saí no ano passado só porque ganhámos. Isso não existe. Quem me dera a mim sair e o Benfica ganhar sempre. E poder voltar e o Benfica poder ganhar sempre. Nada contra A, B ou C. Senti, sim, que precisava de um desafio diferente para a minha carreira.
Estas muitas saídas do Benfica, sendo sinal da competência das pessoas, também mostra que se paga pouco nesta área em Portugal, mesmo no contexto de um clube grande?
Acho que é uma boa questão. É uma realidade com a qual nós lidamos. É assim em todas as áreas do país. Os melhores profissionais acabam por sair e muitas vezes com melhores condições financeiras, projetos mais aliciantes a nível de execução diária, mas sim: estamos num cantinho da Europa, somos um país pequenino e não temos a riqueza de outros. Isto é óbvio e acontece em todas as áreas e não só no scouting. Mas penso, falando do que conheço das pessoas que trabalharam mais diretamente comigo, ninguém diz que só sai porque vai ganhar mais. Quando há paixão pelo clube, há muita coisa. O salário emocional também é muito importante. Não há nada que pague o que se vive dia a dia no Benfica ou noutros clubes quando as pessoas estão bem. Ou o que se vive em nossa casa com a nossa família. Isso tudo é muito importante.
Faz-lhe sentido que o Benfica opte, pelo menos para já, por não preencher a sua vaga de chief-scout?
Eu ainda estava presente quando isso foi debatido e a ideia foi: «O mercado está a acontecer, está aberto, estamos a executar o trabalho que vinha sendo feito. As pessoas reportavam a ti e tu eras o interlocutor diário connosco e neste momento podem ser elas esses interlocutores connosco. Não sei o que vai acontecer, mas naquele momento percebi que se calhar o mais fácil foi aquela decisão, até porque estamos no final da época e com um trabalho feito com muitos meses e muitos alvos já definidos. Acho que era um bocadinho por aí.
É possível a estrutura de scout do Benfica não se ressentir depois de tantas saídas?
Para responder aos desafios imediatos do mercado de contratação de verão, acho que é possível. Iniciar uma época com este número de scouts será mais complicado, mas acredito que o Benfica já tem algo minimamente pensado para melhorar essa situação.
Como é que vai ser a dinâmica de trabalho no Nottingham Forest?
Não pode haver investimentos desmedidos, até porque a Premier League tem regras diferentes e o Nottingham foi punido com perda de pontos no passado e não quer que isso volte a acontecer. Não pode haver investimentos desmedidos se não houver receitas também elevadas. O projeto passa muito por reforçar a equipa de modo que ela esteja mais apta para responder aos desafios diários da Premier League, mas também identificar jovens talentos para poderem crescer e desenvolver-se dentro e depois fora.
Às vezes questionamo-nos porque é que muitos desses jovens talentos parecem escapar ao radar dos clubes da Premier League, acabando por ir para mercados mais periféricos como Portugal para depois serem vendidos por muito dinheiro a esses clubes.
Mas aí eu percebo. Aí estamos a falar do topo do futebol inglês, muitas vezes.
Não um Nottingham, sim.
Ainda [risos]. A ambição é sempre para crescer. Mas os clubes grandes ou enormes podem dar-se a esse luxo: e Portugal funciona como o teste do algodão. Estamos a falar de jogadores que lutam para ser campeões, que estão na Champions League. Em muitos casos são jogadores que vêm da América do Sul e o primeiro passo na Europa é aqui. E o contexto do Benfica – um clube que luta sempre para ganhar e que tem uma grande pressão dos adeptos – dá-lhes a segurança de que se o jogador conseguiu responder a isso, mais facilmente responde aos desafios num clube com uma dimensão financeira superior.
O Benfica é passado ou gostava ainda que fosse futuro?
O Benfica é passado enquanto profissional, será sempre o presente enquanto adepto e sócio e acredito que será futuro enquanto adepto, sócio e profissional.
Como têm sido estes primeiros dias de trabalho dos três anos de contrato com o Nottingham Forest?
Têm sido muito bons e muito intensos. Reuniões com os proprietários do clube, reuniões com colegas, com o treinador, com a equipa técnica e neste momento cabe-nos trabalhar para que na próxima época o Nottingham possa estar confortável na tabela e não estar a lutar até à última jornada pela manutenção.
E tem jogadores do Benfica na shorlist? Numa equipa sombra?
Parece-me difícil o Nottingham contratar jogadores ao Benfica neste momento. São jogadores muito caros para a realidade do clube, mas nunca se sabe. O mercado é muito volátil.

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