O 25 de novembro que mais me interessa aconteceu em Vigo, precisamente há 25 anos. Não assinalo a efeméride porque não sou masoquista, mas todos os anos alguém na comunicação social faz questão de me relembrar um dia que pareceu irreal, primeiro, para gradualmente se tornar um daqueles momentos a que chamamos de rude despertar. Os anos passaram e já conseguimos rir de um dos piores onzes viStos a envergar o manto sagrado numa competição europeia, mas o facto permanece e a memória também.
Não sabemos sempre o que estamos a ver quando estamos a ver tudo acontecer, mas tenho a certeza de que todos sentiram que aquela noite em Vigo permaneceria como uma das piores da memória coletiva benfiquista. É sempre assim com as tragédias, mas será que conseguimos ser assim com os pequenos milagres que acontecem à frente dos nossos olhos? Será que os valorizamos devidamente? Ou será que nos aburguesámos e nem damos pela magia irrepetível a acontecer?
Ver Ángel Di María fazer o que quer num relvado em 2024 é um privilégio ainda maior do que parece à primeira vista. Não se trata apenas da oportunidade de ver um intérprete extremamente eficaz e útil aos objetivos da equipa, que puxa pelos colegas e pelos adeptos puxando, antes de mais, por si mesmo, quando a maioria dos atletas da sua idade já estaria em casa descansada e contente com uma carreira observada no retrovisor. Visto assim parece muito, e é, mas é ainda mais valioso do que isso, pela escassez crescente de intérpretes como ele.
Não é só o Benfica que tem dificuldade em apresentar jogadores com a qualidade artística de Di María. São mesmo todos os clubes, seja porque já não se fazem destes ou porque o treinador tem uma ideia de jogo que parece uma Autoeuropa futebolística, em que os líricos acabam a apertar parafusos ou são substituídos pela inteligência artificial.
Bem sei: a história repete-se e vai desmentindo cada geração que diz que estamos perdidos e que dantes é que era bom. Ainda assim, devo teimar. Tenho andado atento e não vejo em que é que a evolução desta modalidade irá voltar a coincidir com a origem cultural das colheitas de décadas anteriores. Talvez lá cheguemos, por força de circunstâncias ou porque toda a gente se fartou de ver robôs, mas parece-me que estamos muito longe de ver chegar esse dia. Esta constatação torna jogadores como Di María, aos 36 anos, uma verdadeira espécie em vias de extinção. Pode até haver quem pareça uma promessa de Di María, mas rapidamente se verá esmagado pelas instruções do diretor da linha de montagem.
Entretanto, podem continuar à procura. Avisem-me quando encontrarem um jovem jogador que se aproxime da combinação de personalidade, desobediência, talento e ética de trabalho que define este génio argentino há quase 20 anos.
Podia ser só um lamento de quem sofre por antecipação, mas escrevo estas linhas com o entusiasmo de quem acredita que o melhor de Di María está para vir. Se dúvidas restarem, é ver ou rever os golos marcados contra o Estrela da Amadora ou os muitos golos e assistências que leva esta época.
Recapitulemos: um jogador no suposto crepúsculo da sua carreira, regressado ao primeiro clube que representou fora da sua terra, um intérprete quase único de um tipo de futebol que desaparece a cada dia que passa, a viver um momento de forma que até parece brincadeira, e tudo isto envergando uma camisola encarnada com o emblema mais bonito e grandioso da história dos emblemas. Não questiono a felicidade que Di María dá aos adeptos, mas será que paramos para pensar no quão raro é aquilo que está a acontecer? Há quem, munido de uma angústia existencial saída do Football Manager, diga que Di María é um problema para Bruno Lage e para o Benfica. Nada mais errado. Di María é uma bênção. Nem todos percebem isso hoje, mas todos chegarão ao corolário inescapável. Daqui a uns anos, num domingo frio, chuvoso e mal jogado na Luz, os mais esquecidos vão esconder as lágrimas e dirão entre dentes: éramos felizes e não sabíamos.
Já aqui critiquei muitas vezes o projeto desportivo do Benfica, ou a ausência do mesmo, ou a dificuldade em compreender que projeto é esse. Mas, tal como num jogo de futebol, até o pior jogador pode ter um lance muito bem conseguido. Di María foi um destes raros momentos que trouxe alguma alegria a um Benfica deprimido e afastado dos títulos. Todos precisamos dos títulos e não descansaremos enquanto não voltarem, mas passa-se uma vida, entretanto, e, aconteça o que acontecer, nunca poderemos ser indiferentes a quem cuida tão bem de uma bola de futebol.
O futebol é uma coisa muito séria, ou melhor, que eu levo muito a sério, mas é também mais do que as suas dimensões organizacionais e macroscópicas. Umas vezes é uma derrota copiosa em Vigo que nos perseguirá a vida inteira. Outras vezes é um hat trick do jogador favorito partilhado entre pai e filho, como aconteceu comigo e com o meu Tomás no último sábado. Não sei se algum de nós mais tarde se lembrará do resultado deste jogo, mas a exibição do Di María, aquele carrossel imparável de golos lindos, essa memória já cá canta.
E por isso termino com dramatismo, porque a vida me lembra cada vez mais que estes momentos não têm preço e são tudo o que importa, quase sempre mais do que o resultado final. Aproveitemos cada um desses dias com a voracidade de quem não sabe quantas mais oportunidades terá, com uma consciência aguda da finitude dos outros, dos que mais nos dizem, uma finitude que é, também, a nossa. Hoje há Di María, amanhã não sabemos. Celebremos enquanto assim for!
Vasco Mendonça, in a Bola
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