sábado, 1 de abril de 2017

INDIGENTES DE LUXO


Logo na pré-história do jornalismo, a imprensa tomou-se de amores pela peculiar figura do indigente de luxo. Até o torrencial escritor Victor Hugo constatou, inconformado, a rendição dos jornalistas do século XIX francês perante essas figuras triunfais, sem fontes de rendimentos atribuíveis, a quem chamava "indigentes de luxo" entre outras coisas. "Os indigentes de luxo fulguram em manchetes de jornais", escreveu Hugo, que apesar do seu indisputado génio de romancista, não compreendia como se podia emprestar crédito e respeitabilidade a essa gente "que se utiliza das leis em falência" para somar o bem-estar à celebridade do momento. Felizmente passaram-se já 200 anos sobre esta horripilante fraqueza social. A inelutável marcha da civilização colocou os indigentes de luxo - estes, sim, ainda existem - no lugar devido. Nas mil vertentes tecnológicas e analógicas, com que o autor de "Os Miseráveis" nunca sonhou, a imprensa de hoje pode dedicar-se livremente a temas bem mais elevados em prol da informação, da consciencialização cívica dos seus seguidores e do bendito progresso da sociedade sem o qual, refiro-me ao bendito progresso,continuariam, sabe-se lá por quantos mais séculos, os párias de luxo a fulgurar em manchetes de jornais. E de telejornais. E até no cabo. Perdoem-me a despropositada evocação do que era moderno no velhíssimo século XIX e da incredulidade de um romancista perante as vénias com que ainda titubeante imprensa do seu tempo saudava aqueles que, "enjaulando nas próprias garras a justiça que os não alcança", petiscavam requintes de Estado sem nunca mexer uma palha. Passou-se na França de Victor Hugo, há 200 anos. Cá pelo nosso país, diga-se, nunca houve disto. Cá pelo nosso país o que vai haver, já esta noite, é um jogo de futebol, que se adivinha renhidíssimo, entre as duas equipas que lutam pela conquista do título de campeão nacional. Como assunto, com franqueza, também não é do outro mundo. Todos os anos desde que a prova existe, é disputado, mais ou menos por esta altura, um jogo renhidíssimo entre as equipas que discutem o troféu. Logo se verá quem ganha o jogo. E logo se verá se as fulgurantes manchetes da semana transata servirão para alguma coisa que possa, daqui a 200 anos, ser apontada às gerações vindouras como exemplo acabado de uma pré-história qualquer.

Leonor Pinhão, in record

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