"Não sei bem porquê mas parece haver no espírito do português um mórbido prazer na vizinhança da desgraça - em montar a tenda bem à beirinha do precipício.
Quando, na sequência do recente jogo com a Sérvia, perguntaram ao seleccionador-treinador como explicava a passagem de uma primeira parte quase perfeita para uma segunda de aflitos, ele, simplesmente, respondeu: “não sei explicar...tínhamos tudo preparado “.
Aqui vai uma ajudinha: nessa exaustiva preparação se incluiu a enfática verbalização dos nomes dos jogadores sérvios - quase todos!- que, para o nosso treinador, constituíam sério perigo para as nossas cores. Pois é, tem-se aquilo que se teme. É aquilo a que os psicólogos chamam “profecia auto-realizada”.
Depois, sabem, parece, de facto, haver em nós um gosto esquisito, quase perverso, pela tangente: quando as coisas estão bem encaminhadas, logo tratamos de as pôr assim-assim- esse tópico consagrado da nossa pegajosa mediania.
Não vou ao ponto de afirmar que o povo português do que gosta é de chicote, embora pareça por vezes, mas é certamente um povo para quem o prazer máximo parece residir no intervalo mínimo entre cada chicotada.
E o que mais me incomoda é pensar que nem sempre fomos assim: que o diga Cabral, Gama, Bartolomeu Dias ou Fernão de Magalhães. Se assim tivéssemos sido sempre não teríamos vencido em São Mamede, Atoleiros ou Aljubarrota.
Então, o que é que nos terá tornado assim tão íntimos da tangente lamentosa? O desastre de Alcácer-Quibir? O terramoto de 1755? (Voltaire viu nele um trágico abalo no optimismo que a Enciclopédia tão ufanamente ostentava), terá sido a decepação do braço imperial, a separação política do Brasil?, o regicídio da Rua do Arsenal?, o assassinato do Sidónio, a esperança do povo? Que coisa é essa que parece impelir-nos para os braços de uma triste sina? O fado? Ou o fado é já ele consequência de assim sermos?
Naquele famigerado jogo de Belgrado, tínhamos tudo tão certinho e até fizemos um golo que não valeu nos últimos instantes...
Mas este episódio tão ao jeito da nossa clássica propensão para assumir o papel de vítima faz-me lembrar aquela viúva fingida que, com ar compungido, se compraz em ser engolida em abraços e condolências- é o seu secreto consolo.
Imagine-se que até de Espanha surgiram manifestações de solidariedade com o inconsolável Cristiano - não por ele ser nosso, mas por o considerarem deles!
Enfim, não havia necessidade de nos expormos assim tão descaradamente à universal compaixão: bastaria que, em vez do medo de perder, tivessem interiorizado a certeza de ganhar. Mas falta-nos assumir o pleno estatuto de comensais do céu: achamos sempre que algo de infernal nos espreita.
Mas se na Escola de Sagres se tivesse implantado o medo do Adamastor, nunca Portugal teria sido o primeiro campeão mundial da globalização.
Os nossos treinadores não há meio de se convencerem que não é verbalizando, com erudita clarividência, os perigos que deles se livram, bem pelo contrário - é a maneira mais indefectível de os atrair.
Entretanto, revolvemo-nos no prazer espúrio de uma generalizada compaixão que mais não faz que confirmar-nos no nosso atávico sentimento de uma resinosa pequenez. Pensemos alto e ir-se-nos-á essa estranha mania das tangentes.
Somos bons em exercícios de equilíbrio instável: nosso meio de vida é a corda bamba. Mas, cuidado, não vá escorregar-nos o pé e cairmos no buraco, buraco que segue a nossa sombra."
José Antunes de Sousa, in A Bola
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