sexta-feira, 11 de outubro de 2024

UM PONTAPÉ NO ESTÔMAGO DO MISTERIOSO HOMEM



 "Mario Benedetti, poeta uruguaio, quis ser guarda-redes, mas o sonho morreu-lhe na infância


Quando a mãe queria encontrar Mario procurava-o no descampado mais perto de casa: era um dos dois garotos que se posicionavam, atentos, entre duas pedras que faziam de balizas. O problema era, depois, arrastá-lo desse campo de futebol improvisado. Mario sempre foi um daqueles que aprendeu desde cedo a dizer NÃO! E continuou a dizê-lo até ao fim da sua vida. Foi ainda muito menino que o arquero Benedetti sofreu o golo mais doloroso de todos: numa baliza dessa vez a sério, num torneio infantil de Paso de los Toros, no Departamento de Tacuarembó, no norte do Uruguai, enfrentou com valentia o ponta-de-lança adversário que tinha o dobro do seu tamanho. Recebeu a bola chutada com violência em plena boca do estômago, tombou com ela para dentro da baliza, ficou com mazelas para sempre.
Um ano depois desse momento frustrante, houve mais frustração a envolver os Benedetti Farrugia: o pai de Mario, que tinha uma farmácia, viu o negócio ir à falência. Se já eram remediados, ultrapassaram a fronteira da pobreza. E, mais ainda, da tristeza. Talvez aí, Mario tenha começado a escrever nas entrelinhas da poesia que o tornou inimitável.
«Es una lástima que no estés conmigo
cuando miro el reloj y son las cinco
y soy una manija que calcula intereses
o dos manos que saltan sobre cuarenta teclas
o un oído que escucha como ladra el teléfono
un tipo que hace números y les saca verdades».
A verdade dos números negativos enviou a família Benedetti para Montevidéu, cidade de todas as oportunidades. Mario estudou na Deutsche Schule Montevideo até que o pai, horrorizado, percebeu que lhe injetavam a ideologia nazi. Então passou para o Liceo Miranda. E trabalhava ao mesmo tempo.Tinha 14 anos.Foi estenógrafo, tradutor e, finalmente, jornalista. Escrevia. Escrevia muito. A sua escrita fazia sentido. Batia ao ritmo do seu coração definitivamente magoado como quando sofreu o golo de um adversário com o dobro do seu tamanho e ouviu gargalhadas de escárnio que feriam como balas.
Em 1973 a ditadura militar tomou conta do Uruguai e Mario deixou de ter espaço no país. Entrou pelos labirintos do exílio, primeiro em Cuba, depois em Espanha. Havia agora quem escrevesse sobre ele e sobre os seus golos sofridos. Amigos, camaradas, companheiros, gabavam-se da proeza de terem marcado golos nas balizas que defendera. Mario sorria e queixava-se: «Creio que as minhas últimas, vá lá, cinquenta defesas de uma baliza tiveram lugar em jogos improvisados entre intelectuais. Num deles, Eduardo Galeano marcou-me um golo infame, a mim, Mario Benedetti, algo pouco menos do que geracional – para cúmulo sublinhado por uma fotografia de ignomínia». Galeano tinha menos vinte anos do que Benedetti, levou vantagem na cancha. Já o poeta mexicano, Efraín Huerta Romo, que era mais pela idade de Mario, desavergonhou-se da mesma forma em Textos Profanos: «Numa solarenta manhã, nas areias prateadas de Jibacoa (uma praia de Cuba), meti dois golos ao arquero uruguaio Mario Benedetti». Dois. Logo dois. E o portero lamentava-se: «Nunca ninguém escreveu sobre as defesas que fiz. Mas isso, como todos sabemos, não faz notícia na vida de um guarda-redes». E filosofava: «Para um guardameta a real dimensão da baliza é de, aproximadamente, um quilómetro de largura. E ele, por mais que se persigne, sente-se ali como Gulliver no país dos gigantes, sabedor que um deles acabará por fuzilá-lo sem piedade». Para Mario, os guarda-redes tinham uma aura especial e via-os como que flutuando por baixo da trave com um ar distante, misterioso, solitário e impassível: «En el reino del área no es preciso correr, sino volar».
Nas balizas, Benedetti voou pouco e como pôde. O pontapé fatal da infância ordenou que passasse a sofrer de asma e de deficiências intestinais até ao dia da sua morte, 17 de maio de 2009. Na véspera chamou a sua secretária, Ariel Silva, para a beira do seu leito, e recitou para que ela tomasse nota o derradeiro poema arfante:
«Mi vida ha sido como una farsa
Mi arte ha consistido
En que esta no se notara demasiado
He sido como un levitador en la vejez
El brillo marrón de los azulejos/
amás se separó de mi piel…».
Ficou assim, dependurado em reticências, como se estivesse decidido a voltar da morte um dia qualquer em que pudesse acabá-lo. Ele, que fora amigo de CheGuevara, e que dizia a toda a gente que ambos tinham duas coisas em comum, a asma e terem sido guarda-redes, também não esqueceu o Che no dia em que o fuzilaram em La Higuera, nas montanhas da Bolívia: «Donde estés, si es que estás, si estás llegando, será una pena que no exista Dios. Mas habrá otros claro que habrá otros dignos de recibirte,comandante!»"

Afonso de Melo, in Sol

Sem comentários:

Enviar um comentário