"Minuto 90+7, a bola sai pela linha final, canto para a equipa da casa. O público, que já se tinha resignado a mais uma angustiante derrota, de repente ganha fulgores, vontades, esperanças. Levantam-se todos aos uivos, de sonhos em riste: é canto, caraças! Ainda empatamos isto! O guarda-redes abandona a baliza e corre tresloucado para a área adversária; do lado de fora, treinadores, médicos e suplentes fazem sinais tácticos para dentro do campo. Momento de tensão.
O jogador beija a bola com religiosa devoção, coloca-a no canto do canto, quase a sair da linha. Dá uns passos atrás, desvia a bandeirola, molha o dedo na língua e estende-o para o ar, sentindo as flutuações do vento, calculando a precisão necessária, o ângulo certo, o desvio, o efeito que a bola tem de levar para chegar inteira ao interior da área. Agora o silêncio sepulcral das bancadas. O mundo inteiro à espera de um golpe de asa que leve aquela bola do canto para o ar e do ar para a cabeça de algum afortunado que a atire para dentro da baliza desarmada.
No estádio, ouve-se o som da chuteira a bater de lado na bola e ela sobrevoa o relvado enquanto vinte e dois jogadores se amontoam, se empurram, se largam, se batem, se abraçam. À entrada da área, o árbitro analisa meticulosamente aquela floresta de pernas e braços e cabeças preparado para fingir perceber uma pequena ilegalidade que transforme o canto num penálti. O caos está instalado e a bola ainda vem no ar, vem no ar, vem no ar, está a chegar, parece que chegou, mas segue, segue, segue, e vai sair pela linha lateral do outro lado. Ouve-se o apito final. Os jogadores barafustam com o árbitro, o público barafusta com os jogadores, a bola já não barafusta. Queda-se inerte junto a um anúncio de sites de apostas. Um apanha-bolas guarda-a no regaço, feliz. Treinadores e atletas entram pelo relvado adentro cumprimentado-se uns aos outros. This is the end.
O perigo num pontapé de canto é quase sempre demasiado sobrevalorizado. Por a bola estar parada, acha-se que o lance é mais perigoso do que um qualquer cruzamento em bola corrida quando tanto um como o outro são geralmente lances desinteressantes do ponto de vista ofensivo. É evidente que se tivermos superioridade numérica na área adversária ou especificamente um jogador da nossa equipa sozinho em zona de finalização não será má solução assisti-lo através de cruzamento mas, regra geral, estar a atirar balões para uma catrefada de jogadores é deixar o destino não às mãos de uma maior probabilidade de êxito mas apenas à sorte (um ressalto, um mau posicionamento adversário, um erro individual). É mais religião e menos futebol.
O canto pode ser interessante se usarmos o facto de ele ser desinteressante para nós mas interessante para a equipa adversária. Ou seja, jogar com o facto de o adversário levar muito a sério isto dos cantos. E então surpreendê-lo com saídas de bola estudadas e organizadas para usar o posicionamento da outra equipa. O Barcelona de Guardiola, por exemplo, desprezava constantemente a bola alta só porque é canto; saía com 3 e 4 jogadores pelo chão, entrando na área adversária pela surpresa de movimentos, criando novos perigos, diferentes caminhos para o golo.
Ter o adversário todo enfiado à frente da baliza pode ser uma vantagem crucial para criar desequilíbrios assim que se procure a zona da bola. São jogadores que estão com espaço, com algum tempo e sobretudo de frente para a baliza, observando todo o movimento das partículas dentro da área adversária. As soluções aparecem, diagonais, mudança de flanco, passe de ruptura, até o remate. Mas, antes do perigo, o essencial: não atirando uma bola para o acaso da maralha, a posse continua nossa. A bolinha, a pelota, continua jogada pelos nossos pés. Com ela poderemos fazer o que bem entendermos em vez de a desprezarmos pelos céus; se a atiramos assim dessa forma tão leviana, sabe-se lá o que o destino lhe terá reservado. Um mau-olhado de séculos, um ressuscitar da bola em esfregona de curling, uma – Deus Nosso Senhor Maradona nos acuda! - vida eterna a percorrer o corredor de madeira de um bowling bafiento.
Pelo sim pelo não, no canto, no corner, no calcio d´angolo, é sempre melhor tentar ir pela relva. É na passarela de erva húmida que a redonda gosta de desfilar."
Ricardo Silveirinha, in Record
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