segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

O DESPORTO NEM SEMPRE EDUCA...

Todos aprendemos que o Desporto é sempre ciência, comunicação, lazer, educação, aptidão, saúde, generosidade, solidariedade, tolerância, coragem. Desde a Escola Primária isso nos foi repetido, como se de um dogma se tratasse. Eu mesmo me convenci de que o Desporto só trazia benefícios incontáveis, quando escutava tanta gente responsável a repetir esta «lenga-lenga».

No entanto, o desporto sofre hoje uma ameaça terrível, que se dirige à sua própria essência. E essa ameaça vem não só da «sociedade do espectáculo», que é a nossa e que origina a «civilização do homem sentado», mas também dos poderes que o submetem ao lucro selvagem e globalizado, ou então o toleram vigiado, instrumentalizado. Uma interpretação unicamente higiénica e biologizante do desporto, sustentada por certas vulgatas pretensamente científicas (como se o positivismo ainda fosse mensagem para o nosso tempo), que afirmam convictamente reduzir-se a prática desportiva principalmente à promoção e manutenção da saúde – enfileira também numa visão reducionista do desporto, acoimado de prática preventiva ou reeducativa e... pouco mais! Aliás, quanto mais «físico» for o Desporto, mais acéfalo e apolítico ele será.

Ora, uma profissão de fé no Desporto e na tarefa que lhe cabe como processo libertador, exige que dele sejam definitivamente erradicadas todas as formas de elitismo e mandarinato dos que pretendem assenhorear-se do desporto, para mais facilmente imporem as suas ideias e os seus interesses, onde se confundem o lucro e um desporto apolítico, o biologismo e a ausência de qualquer atitude crítica e subversiva do «status quo», o moralismo e a competição anti-ética e anti-moral. Vale a pena ler a «Dialética do Esclarecimento» de Max Horkheimer e Theodor Adorno: «Não é o bem, mas o mal, o objecto da teoria (...). Só existe uma expressão para a verdade: a ideia que nega a injustiça». É bem de ver que à teoria assim conceptualizada corresponde a emancipação (a democratização) como práxis., ou seja, não pode haver crítica sem práxis, porque é a práxis o lugar da construção da História.

Calcorrear por trilhos já andados, mesmo que pelos antigos mais prestigiados, é amputar em nós mesmos a liberdade. Tempos houve em que o poder político, estruturado na forma de burocracia, foi a consequência lógica de colocar, sem sofismas, a ditadura como princípio organizativo e dinâmico, no lugar da sociedade livre, democraticamente estruturada. O dirigismo desportivo, de há cinquenta e sessenta anos atrás, não poderia, por isso, produzir qualquer discurso emancipador e democratizante, nem assumir uma práxis que abalasse a solidez do aparelho ditatorial. O dirigente desportivo, quando criticava, denunciava o transitório e aparente, não o fundamental, o essencial. Era então impossível um regime de separação Estado-Desporto, mantendo cada um, na sua ordem, a própria independência e competência. O descomprometimento do desporto, em relação aos métodos da governação totalitária, era de difícil concretização.

Mas pode perguntar-se se ainda hoje, numa sociedade que diz ter já interiorizado a democracia, não são visíveis, no desporto, estas facetas: quando o lucro é quase tudo, tudo o resto é quase nada; uma competição-hostil, no lugar de uma competição-solidariedade; uma conceção objectiva e funcional do ser humano e da natureza, que produz especialistas, gera campeões, está na base de um declarado progresso tecnológico, mas não é mensagem de vida. Quero eu dizer: mesmo nos atuais regimes democráticos, o desporto tem de repensar-se, de reexaminar-se, de recriar-se. E como? Salvo melhor opinião, começando pelos pequenos clubes, pelas pequenas agremiações locais. Leonardo Boff, um dos pais da teologia da libertação, propõe um conceito de revolução molecular: «Certamente necessitamos de revoluções, para provocar as mudanças necessárias; mas os caminhos para tais mudanças são hoje diferentes. Mudanças estruturais já não bastam; também os promotores das mudanças (sejam pessoais ou colectivas) precisam modificar-se. Acreditamos em revoluções moleculares. Como a molécula, a menor massa de matéria viva garante sua sobrevivência por sua relação e articulação com outras moléculas e com o meio ambiente, do mesmo modo precisam as revoluções realizar-se em grupos e comunidades, interessados em mudanças(...). A partir daí podem outros setores da sociedade começar a modificar-se» (conferência realizada com o teólogo alemão Eugen Drewermann, em Junho de l993, em Dortmund).

A criação de um desporto novo passa por um maior apoio e respeito aos pequenos clubes – que não tentem ser o reflexo do que se passa, nos grandes clubes! Todo o Desporto deveria ser, necessariamente, uma pedagogia e uma política. Se a prática desportiva é uma atividade humana, ela é uma escolha e, como tal, um ato político. Ora, é normalmente nos pequenos clubes que o Desporto pode ser pedagogia e política. Os «clubes grandes» estão na mão dos grandes interesses e é muito difícil «democratizar a democracia» (Anthony Giddens) que neles se encontra. Restam-nos os pequenos clubes, para tentar fazer o novo! O Desporto pode educar, mas precisa de transformar-se no reflexo e no projecto de uma cultura nova. O desporto tem necessidade de valores em que possa acreditar, de modelos que possa seguir. Sem eles, é o caos moral. Precisamente onde se encontram alguns dos grandes clubes! De facto, o desporto nem sempre educa, nem sempre é uma prática saudável, nem sempre ensina a denunciar a sociedade injusta. Isto, o que me ocorre escrever na véspera de 2014.

Não, não sou contra o espetáculo desportivo. Bem ao invés: é o meu espetáculo favorito! Mas, assim como no neocapitalismo dominante os pobres são cada vez mais pobres e os ricos são cada vez mais ricos, também no mundo do desporto há clubes que podem comprar jogadores, por um preço de milhões e milhões de euros, e outros que, embora de uma honestidade inatacável e com um admirável currículo desportivo, se aproximam a passos largos da miséria. Por isso eu venho acentuando, ao longo de grande parte da minha vida, que já não é curta, que o desporto atual reproduz e multiplica as taras da sociedade capitalista. E deveria ser contra-poder ao poder das taras dominantes. Repito: não condeno o espetáculo desportivo. Mas gostaria de vê-lo ao lado de todos aqueles que lutam por um mundo novo!Feliz 2014!
Manuel Sérgio é Professor catedrático da Faculdade de Motricidade Humana e Provedor para a Ética no Desporto

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