domingo, 7 de janeiro de 2018

OLIMPICAMENTE: INCONCEBÍVEL, INTOLERÁVEL, INADMISSÍVEL, INACREDITÁVEL, INACEITÁVEL


O sul-coreano Ban Ki-moon (n. 1944) é um Senhor. Com letra grande. Foi o oitavo secretário-geral da Organização das Nações Unidas (ONU) (eleito a 13 de Outubro de 2006) funções que exerceu entre 1 de Janeiro 2007 e 1 de Janeiro de 2017. Após deixar a ONU, Ban foi eleito presidente da Comissão de Ética do Comité Olímpico Internacional (COI) na Sessão de Lima, que decorreu de 13 a 16 do passado mês de Setembro de 2017. Foi o primeiro presidente verdadeiramente independente a assumir funções na Comissão de Ética do COI.
A Comissão de Ética do COI está prevista na Regra 22 da Carta Olímpica onde se afirma que tem por missão “… definir e atualizar um quadro de princípios éticos, incluindo um Código de Ética, com base nos valores e princípios consagrados na Carta Olímpica, do qual o referido Código faz parte integrante”. Além disso, investiga as queixas levantadas em relação ao não respeito de tais princípios éticos, incluindo violações do Código de Ética e, se necessário, propõe sanções ao Conselho Executivo do COI.
O que é mais importante na Comissão de Ética do COI é que, para além do seu presidente, também os seus membros (que se candidatam individualmente, sem programa e sem promessas) são eleitos pelos membros da Sessão (assembleia plenária) do COI, numa votação direta e secreta, pela maioria dos votos expressos. Por isso, os seus Estatutos no artigo primeiro determinam que a Comissão de Ética é independente. E, assim, até pelas pessoas que a ocupam, tem um estatuto de prestígio e dignidade insofismáveis. É composta por nove membros, entre os quais deve haver:
- Quatro membros do COI, quer sejam membros ativos, honorários, ou ex-membros do COI, incluindo um representante da Comissão de Atletas do COI;
- Cinco personalidades, membros independentes, que não são ativos, honorários, ou ex-membros do COI e que não tenham nenhuma ligação direta com o movimento desportivo.
- O presidente da Comissão de Ética do COI é uma das personalidades que não deve ser membro do COI.
Quer dizer, a Comissão de Ética do COI é um órgão absolutamente livre e independente e aberto ao exterior, cujos membros são eleitos diretamente pela Sessão sem qualquer obrigatoriedade ou privilégio de ordem corporativo-profissional entre entidades de grande prestígio não só pelo seu currículo bem como pelo exemplo das suas vidas como é o caso de Ban Ki-moon.
Portanto, o Comité Olímpico de Portugal (COP) tinha na Carta Olímpica um extraordinário exemplo de uma Comissão de Ética que podia e devia ter replicado na revisão de 27-09-2016 que fez dos seus estatutos. Infelizmente, optou por uma solução paroquial de um Conselho de Ética sem qualquer valor, sem qualquer credibilidade e sem qualquer prestígio que, bem vistas as coisas, não serve para coisa nenhuma a não ser para, eventualmente, apoiar juridicamente as decisões da Comissão Executiva. Por isso, aquilo que podia ter sido saudado como uma medida de fundamental importância não passou de uma medida que mais não faz do que reafirmar um “status quo” decadente de uma instituição que, desde que bem gerida, podia ser um verdadeiro motor do desporto nacional.
Assim, cabe perguntar:
(1º) Porque é que o COP não seguiu o padrão da Comissão de Ética da Carta Olímpica do COI?
É inconcebível que o COP não tenha seguido o modelo de Comissão de Ética do COI. E é tanto mais inconcebível quanto se sabe que são os próprios Estatutos do COP que, no seu preambulo, afirmam solenemente que “o Comité Olímpico de Portugal tem por missão desenvolver, promover e proteger o Movimento Olímpico em Portugal, em conformidade com a Carta Olímpica, …”. Ao não seguir o modelo da Comissão de Ética do COI, a atual chefia do COP, optando por um modelo caduco e desconforme, reafirmou o futuro como uma mera repetição daquilo que já se fazia no passado com resultados absolutamente desastrosos. Em consequência, hoje, o futuro do Movimento Olímpico português é visto como uma fonte de preocupações quando podia ser visto como uma fonte de oportunidades.
(2º) Porque é que o COP optou por uma visão corporativa de ordem instrumental?
Na solução encontrada, imperou a força da “razão instrumental” de ordem corporativa, paternalista, individualista e narcisística quer dizer, uma racionalidade que, no desdém pelos valores democráticos, permite chegar a um determinado objetivo de uma forma expedita, rápida, operacional, imediata e errada. Nestes termos, a lógica corporativa da institucionalização do Conselho de Ética não está de acordo com os valores e os princípios que movem o olimpismo moderno configurados na Carta Olímpica e, menos ainda, com os do País e os da sua Constituição. Representa uma visão caduca e ultrapassada que não corresponde à dinâmica dos diferentes interesses que hoje movem os protagonistas do fenómeno desportivo. De tal solução, resulta que os atletas, técnicos, dirigentes e eventuais interessados que gravitam à volta das organizações desportivas, podem a ser considerados como meros instrumentos à revelia dos seus próprios interesses ou dos interesses da comunidade desportiva de que fazem parte na medida em que o órgão de natureza ética para onde, em caso de conflito de interesses, podem apelar tem uma vocação corporativo-instrumental. É necessário que o Movimento Olímpico, em alternativa às duvidosas soluções instrumentais desprovidas de quaisquer sentimentos de ordem ética, seja capaz de preservar uma certa espiritualidade de princípios e valores que a visão corporativa dos seus dirigentes está a destruir.
(3º) Porque é que o Conselho de Ética é eleito em lista única?
Numa perspetiva instrumental e utilitarista, por incrível que possa parecer, à revelia de uma visão democrática dos sistemas de controlo das instituições e da própria Carta Olímpica, o Conselho de ética é eleito em lista única, quer dizer, em lista solidária com a Comissão Executiva e o Conselho Fiscal. Isto significa que quem escolhe os membros do Conselho de Ética é o candidato à presidência do COP quando constitui a sua lista para concorrer às eleições.
Diz o nº 2 do artigo 12.º (Processo eleitoral) dos Estatutos do COP: “ As eleições para a Comissão Executiva, Conselho Fiscal e Conselho de Ética realizam-se no sistema de lista única, por sufrágio direto e secreto”. Ora, esta solução, para além de não respeitar o modelo perfeitamente possível de replicar da Comissão de Ética do COI, em termos do princípio da transparência democrática, é inadmissível. Uma Comissão de Ética “escolhida a dedo” no seu “círculo de confiança” pelo presidente da Comissão Executiva e eleita em regime de lista única e, por isso, solidária para com o presidente da instituição, para além de não ter qualquer credibilidade não tem a dignidade institucional que deveria ter. Será sempre vista como a uma espécie de “porta-voz” da Comissão Executiva que, em termos jurídicos (devido à sua composição) procurará resolver os problemas de ordem ética que se levantarem ao COP. Note-se, que pessoas escolhidas dentro do “círculo de confiança” da chefia não garantem aos olhos da sociedade uma transparência democrática relativamente aos assuntos que têm de tratar. Por exemplo, sabendo-se que, segundo o nº 3 do artigo 26 dos Estatutos do COP, compete ao Conselho de Ética “prestar esclarecimentos e recomendações aos demais órgãos sociais e aconselhar os membros de Comité Olímpico de Portugal sobre os casos que lhe sejam submetidos, nos termos do Regulamento…”, embora se desconheça se existe um regulamento do Conselho de Ética, uma vez que não o conseguimos encontrar no portal da organização, pergunta-se se o dito Conselho de Ética já instaurou um inquérito relativamente às gravíssimas acusações proferidas pelo Dr. Rogério Joia presidente da ADoP (Autoridade Antidopagem de Portugal) contra José Manuel Constantino e Artur Lopes (Cf. A Bola, 2017-11-11) acusados pelo presidente da ADoP de “esquema montado para tentarem prejudicar o seu exercício”, bem como Artur Lopes de “… supostamente tentar condicionar a atuação da ADoP…”ao tempo da posse de Rogério Joia. Infelizmente, um Conselho de Ética constituído nos termos determinados nos Estatutos do COP, aos olhos de um observador minimamente atento, não passa de uma espécie de tecnoestrutura de apoio ao presidente da Instituição. Todavia, um Conselho de Ética devia garantir a máxima isenção e independência pelo que o respeito pelo “Princípio da Mulher de César” devia ter sido considerado como uma questão de honra. É inaceitável, seja em que organização for que um Conselho de Ética possa ser eleito em regime de lista única e, por isso, solitária com a Direção de qualquer organização.
(4º) Porque é que o currículo social e profissional dos membros do Conselho de Ética não é sujeito a um escrutínio alargado?
Lamento muito dizê-lo mas, independentemente da consideração que, em termos pessoais, as pessoas possam merecer, em termos sociais e epistemológicos, os membros da Comissão de Ética do COP, à parte de Nuno Barreto que, para além de ter sido atleta olímpico em três Jogos Olímpicos Atlanta (1996), Sydney (2000) e Atenas (2000) e medalhado em Atlanta, é Comendador da Ordem do Infante D. Henrique por relevantes serviços prestados ao País, tem, reconhecidamente, dedicado a sua vida ao desporto pelo que foi indicado pela Comissão de Atletas Olímpicos, os restantes membros do Conselho de Ética, depois de termos procurado os seus currículos na NET concluímos não serem portadores de um currículo socio-desportivo que justifique a pertença em tal Conselho. Trata-se de um conjunto de pessoas que, no domínio da reflexão, social, científica ou qualquer outra, tanto no domínio do Olimpismos quanto da ética do desporto, não se lhes reconhece um currículo minimamente convincente. O que é que já viveram em termos de experiência? O que é que já investigaram? O que é que já produziram? O que é que já publicaram sobre o assunto? Em conformidade, em matéria da sua composição o Conselho de Ética, aos olhos da generalidade das pessoas, trata-se de uma figura mais ou menos folclórica que só serve para “épater la bourgeoisie”, nada mais. Trata-se tão só de mais um indicador do individualismo narcisista da sociedade moderna que leva pessoas, sem qualquer competência demonstrada para o efeito, a aceitarem cargos para os quais não estão minimamente preparadas. E a sua impreparação é de tal ordem que não se perceberem sequer que, um Conselho de Ética eleito em lista única e solidária, aos olhos das pessoas minimamente esclarecidas, não passa de uma estrutura que não representa mais do que a “voz do dono”. Lamento dizê-lo mas esta é a triste realidade.
(5º) Porque é que o Conselho de Ética do COP tem de ser constituído maioritariamente por licenciados em direito?
Diz o número 1 do artigo 25º dos Estatutos do COP que “o Conselho de Ética é constituído por um Presidente, um Vice-Presidente e três Vogais, sendo obrigatoriamente pelo menos três deles licenciados em direito, e incluindo um representante da Comissão de Atletas Olímpicos, a indicar após as eleições da CAO.”
Ao contrário daquilo que se passa no COI em que não existem quais quer condicionantes de ordem corporativo-profissional a constituição do Conselho de Ética por um número maioritário de Licenciados em Direto parece-nos, antes de quaisquer outras considerações, de um mau gosto a todos os títulos condenável. Trata-se da defesa de corporativismo vesgo que deturpa a verdadeira vocação e missão de um órgão a funcionar no domínio da ética. Tal opção determina uma lógica de forte limitação cultural e de pensamento único conferindo um peso avassalador e, por isso, profundamente nocivo, às razões instrumentais de ordem jurídica, prejudicando radicalmente uma verdadeira abordagem ético-moral das questões de carácter desportivo. Em consequência, estamos perante um Conselho de Ética que mais parece tratar-se de Conselho Jurídico ao serviço o presidente da instituição. Um Conselho de Ética tem de ser portador de uma inteligência diversificada e contextual pelo que não se esgota na jurisprudência como, só por si, não se esgota em nenhuma área científica. Um Conselho de Ética, por princípio, há-de ser constituído por um conjunto variado de elementos com sensibilidade e formação diversas em interação sinergística, entre outros, nos domínios da teologia, da antropologia, da filosofia, da história, do direito, da educação física e do desporto, da economia, da sociologia, da psicologia, etc. O juízo ético na sua moralidade (note-se, por exemplo, que Pierre de Coubertin nos seus escritos sempre utilizou o termo moral) é o todo e não as determinações separadas e abstratas de cada perspetiva científica pelo que não pode ser subvertido a uma racionalidade instrumental que apenas expressa ações triviais da conduta das pessoas e das organizações. Quer dizer, as partes só encontram um sentido no todo que lhes atribui significado. Tratar-se-ia, assim, de instituir um Conselho de Ética provido de uma inteligência diversificada e contextual característica de uma cultura vigorosa que é de fundamental importância num processo de desenvolvimento na medida em que, do que se trata é de gerar justiça, inovação e qualidade, o que, muitas vezes, nada tem a ver com os formalismos e a objetividade da lei. E o desporto é pródigo em exemplos em que a justiça nada tem a ver com o direito da norma, da regra ou da lei pelo que, em muitas situações, a justiça é ultrapassada pelo direito. A este respeito o caso de Jim Thorpe (1887-1953) é paradigmático. Foram necessários quase setenta anos para se fazer justiça sobre uma lei que serviu, tão só, para praticar uma das maiores injustiças a que já se assistiu no Movimento Olímpico. Por isso, direi que a eticidade de um Conselho de ética, em termos de liberdade de pensamento e de ação, decorre da natureza da consciência dos seus membros que permite ajustar a objetividade absoluta de um conceito ético universal à subjetividade relativa da consciência moral das comunidades desportivas. Significa isto que a ética não rejeita o direito mas não se subordina a ele. A ética está muito para além do direito. Nestes termos, é de fundamental importância o desporto superar a instrumentalidade do pensamento jurídico a medida em que estando a ética muito para além do direito, muitas vezes, o exercício do direito nada tem a ver com a dimensão ética da condição humana. Antes pelo contrário. Um Conselho de Ética, maioritariamente constituído por licenciados em direito, parece-nos, não só, ser uma aberração epistemológica mas, também, uma deturpação da ordem democrática absolutamente inaceitável numa atividade transversal como é o desporto em que a ética tem de primar pelo reconhecimento das singularidades culturais, morais e comportamentais existentes entre diferentes pessoas, povos e nações que, apesar disso, numa ética de autenticidade, não devem deixar de estar integradas numa visão que abarque a humanidade na sua totalidade. Claro que o código olímpico devia ter sido aplicado mas de acordo com as circunstâncias sociais, económicas e políticas de Jim Thorpe. Aliás, o que veio a acontecer em 1982 quando Samaranch devolveu as medalhas que, em 1912, lhe haviam sido usurpadas.
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Numa conclusão final direi que a Comissão Executiva do COP não necessitava de tentar “inventar a roda”. Bastava-lhe ler a Carta Olímpica e os regulamentos que dela decorrem relativamente às questões da ética e replicá-las nos seus próprios Estatutos. E teria feito bem melhor na medida em que evitaria colocar-se numa situação a todos os títulos lamentável que terá de ser corrigida num futuro tão próximo quanto possível.
A ética tem um espaço próprio de análise e reflexão que não de compadece com uma perspetiva instrumental juridicizada do problema. Não tem só a ver com o direito, nem só a ver com boas práticas de gestão. Também não é só um conjunto de “mandamentos” que, tal qual ladainha, acefalamente se recitam nos discursos oficiais de circunstância. A ética é muito mais do que isso. A ética tem a ver com a consciência de cada um e todos nós. Tem a ver com o estabelecimento de horizontes morais que devem estar assumidos na prática de uma dada atividade social como é a desportiva. Não se trata de mais leis, de mais normas, de mais penalizações. Trata-se de mais educação, de mais consciência, de mais cultura e de mais justiça. Tem, por isso, de ser como que uma plataforma de honestidade assumida e praticada que cada um por si e todos em conjunto devem colocar naquilo que fazem. Tem, por isso, de ser tratada de uma forma séria desde logo porque é uma das questões fundamentais da democracia e do desenvolvimento. Se não existe democracia sem ética não existe desenvolvimento sem democracia. A última coisa que se pode aceitar é ver a ética tratada numa lógica instrumental que só serve para iludir as questões, deturpar os problemas, produzir confusões e promover injustiças.
O Movimento Olímpico nacional encontra-se numa das suas maiores crises de sempre que está a destruir o seu capital social. Por isso:
(1º) É INCONCEBÍVEL que o COP não tenha seguido a estrutura e a orgânica do padrão da Comissão de Ética do COI;
(2º) É INTOLERÁVEL que o COP tenha seguido um modelo de características corporativo-instrumentais;
(3º) É INADMISSÍVEL que o Conselho de Ética seja eleito em regime de lista única;
(4º) É INACREDITÁVEL, a carência socio-desportiva da composição do Conselho de Ética;
(5º) É INACEITÁVEL que o Conselho de Ética seja obrigatoriamente composto por uma maioria de licenciados em direito.
Estamos perante um Conselho de Ética sem paixão, sem classe, sem ousadia e sem futuro. Tal facto, pode parecer uma coisa de somenos importância até porque, desgraçadamente, ninguém perde tempo a ler estatutos a não ser quando surgem complicações. Contudo, os estatutos de uma organização são o seu bilhete de identidade. Infelizmente, os Estatutos do COP representam uma imagem falsa e distorcida daquilo que o Olimpismo moderno deve ser. São de uma confrangedora tristeza.
O Movimento Olímpico nacional necessita de uma cultura ético-política vigorosa que exige órgãos com credibilidade que possam questionar, debater e partilhar os caminhos do futuro do Olimpismo nacional.
A haver um Conselho de Ética nos termos do instituído nos atuais Estatutos do COP melhor seria que não houvesse Conselho de Ética nenhum.
Não se percebe como é que a Administração Pública assina contratos de milhões de euros com uma organização que, para além de resultados desportivos miseráveis e de défices financeiros incompreensíveis apresenta uns estatutos com as mazelas que temos vindo a apontar.
Gustavo Pires, in a Bola

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