"Uma criança, que esteja a aprender o alfabeto, olha para um teclado e pensa que os adultos ou são parvos, e não sabem colocar as letras por ordem, ou então passou por ali uma qualquer ventania
Os teclados não colocam as letras por ordem alfabética. Mas poderemos pensar nisso: imaginar um teclado começar lá em cima no abcdefg e ir assim por diante mudando depois de linha, tal como nas linhas de um livro, para as letras seguintes do alfabeto. E, dessa maneira, em vez de um teclado Qwerty teríamos um teclado abcdef.
Uma criança, aliás, que esteja a aprender o alfabeto, olha para um teclado e pensa que os adultos ou são parvos, e não sabem colocar as letras por ordem, ou então passou por ali uma qualquer ventania, natural ou tecnológica, e desarrumou, meio ao acaso, as letras.
E, sim, de facto, olhando com atenção parece não existir qualquer lógica - como uma sala depois de um terramoto, com tudo espalhado fora do sítio: no teclado também, as letras parecem todas fora do lugar.
Porquê na primeira linha Qwerty? Porquê no início da segunda linha asdfgh?
(e diga-se que este fhg, e o op e o jkl são uma excepção, alguma ordem alfabética no meio da bagunça do teclado).
Pois bem, vamos à explicação: a partir da máquina de escrever, o inventor americano Christopher Scholes patenteou este teclado, em 1868, com a ajuda de James Densmore, o seu sócio. O objectivo era «organizar as teclas separando os pares de letras mais usados na língua inglesa», em primeiro lugar «para que as teclas não travessem». Muita da energia da solução vem, então, de um problema antigo das máquinas de escrever mecânicas: as teclas quando eram usadas em certas sequências ficavam encravadas. Mas o mais importante é isto: a velocidade a que se escreve. As separar os pares de letras mais usados na língua inglesa (colocando cada uma dessas letras num dos lados do teclado) possibilitava-se a escrita de duas letas seguidas com duas mãos, o que acelerava muito o processo. Não por acaso, mas eis o facto: o teclado Qwerty domina quase 90 por centro do mercado ocidental.
Mas, então, o que significa? Significa que, escrevendo em português, temos um ritmo de movimento dos dedos que vai contra a natureza fixa do teclado - esse teclado feito para acelerar a escrita das palavras inglesas e não das portuguesas.
Seria interessante, pois, algum matemático português fazer as contas das mais frequentes associações de letras para perceber que teclado deveria ser criado para quem escreva essencialmente em língua portuguesa.
De alguma maneira, podemos imaginar que alguém que escreva em várias línguas possa usar teclado diferentes de acordo com a língua em que escreva (eles já são um pouco diferentes, é certo - o nosso tem o Ç e acentos, por exemplo - mas podemos sonhar ainda com teclados mais específicos). Imaginar um jornalista ou escritor que tivesse em casa quatro teclados distintos, por exemplo - além do teclado para português, um teclado para inglês, outra para o francês e outro para espanhol.
- Para que tens quatro teclados?
- Porque escrevo em quatro línguas - responderia esse escritor/jornalista que levasse a velocidade da escrita e o teclado mais adaptado a essa velocidade, ao extremo.
De qualquer maneira, o interessante em qualquer teclado é que, pela repetição de certas palavras e combinações de letras, permite um automatismo dos dedos - um conjunto de movimentos mais habituais, no meio de outros mais raros.
Alguém, portanto, que escreva rapidamente em português num teclado Qwerty, pensado para a língua inglesa, de alguma maneira impõe um ritmo e um movimento das mãos portugueses; impõe um movimento português, um movimento de língua portuguesa ao teclado que tem posições de língua inglesa. Uma espécie de batalha sem armas. Um movimento aéreo português (o movimento dos dedos) sobre as posições terrestres e sólidas inglesas (o teclado). E o movimento português vence (porque saem palavras em português).
E é, portanto, assim, numa bem portuguesa movimentação afectiva dos dedos - que se sobrepõe à posição das peças inglesas em teclado Qwerty - que me despeço, neste elogio ao jornalismo, deixando o desejo de boas festas para todos e um natal tranquilo."
Gonçalo M. Tavares, in A Bola
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