"Bryson relembra que um «vírus bem-sucedido é aquele que não mata excessivamente», mas que «consegue circular com raio de grande alcance»
1. Recebi recentemente, por correio, o livro O corpo, um guia para ocupantes, de Bill Bryson, em que há um capítulo sobre epidemias. Bryson lembra os imensos surtos nos Estados Unidos e não só. «Surtos intrigantes, principalmente pequenos, são mais comuns do que imaginamos», escreve. Fala-se, por exemplo, do vírus de Powassan, no Norte de Minnesota, que adoece gravemente cerca de dez pessoas por ano e noutras irrupções estranhas e raras - vírus de Bourbon, vírus Elisabtehkingua, etc.
Numa altura em que se fala cada vez mais de um certo instinto de sobrevivência dos próprios vírus, uma selecção natural aplicada ao mundo microscópio, Bryson relembra que um «vírus bem-sucedido é aquele que não mata excessivamente», mas que «consegue circular com raio de grande alcance». E dá o exemplo de vírus da gripe, uma espécie de vírus absolutamente dominante; um micro leão na micro selva perigosa.
Bryson chama a atenção para o facto de ser quase surpreendente «que não aconteçam coisas más», como novos vírus, «com maior frequência». E, referindo-se a uma estimativa de Ed Young no Atlantic, aponta para um dado preocupante: «O número de vírus em aves e mamíferos com potencial para atravessar a barreira das espécies e infectar o humano pode ser na ordem dos 800.000». Muito «perigo potencial», de facto, mas felizmente têm sido, até agora, bem raros os saltos perigosos entre espécies.
2. No Dicionário Imperfeito, Agustina Bessa Luís escrevia que a «importância que a doença toma na vida de um sociedade e das pessoas é uma forma de terror que lhes é imposta, que as pessoas compreendem bem e que acabam por incorporar profundamente». E acrescentava: «As pessoas, hoje, vivem oitenta por cento em torno da doença». E mais à frente, concluía: «As pessoas, aprendendo o medo como uma lei social, vão dedicar-se à doença como não se dedicam ao marido ou aos parentes».
3. Mas, realmente, nesta altura, mais do que nunca, é importante estudar-se um pouco da história das epidemias.
Bryson no livro anteriormente referido, que aconselho, fala do exemplo histórico da febre tifóide, causada por um tifo de bacilo de salmonela, e relata a história de uma cozinheira que, nos primeiros anos do século, foi conhecida uma espécie de «mulher tifóide» porque deixava atrás de si um rasto da doença, não se percebendo porquê. Mais tarde confirmou-se que a referida mulher, Mary Mallon, era uma «portadora assintomática» - infectava os outros, mas nunca revelava sintomas. O mais impressionante historicamente é o resto. Segundo relata Bryson, Mary foi detida durante três anos e, mais tarde, libertada contra a promessa de ela abandonar qualquer actividade ligada ao manuseio de alimentos. Mas, segundo factos Históricos, Mary traiu esta confiança e trabalhou com nomes falsos, por exemplo, na cozinha de um hospital para Mulheres, Sloane, em Manhattan, onde distribuiu inconscientemente febre tifóide. Duas pessoas terão morrido e Mary foi presa, ficando, desde aí, durante 23 anos, na ilha de North Brother, no East River. Tal como na crise actual, lavar as mãos era também o processo simples que simplesmente podia salvar. Mary morreu em 1938, nessa ilha, em prisão domiciliária.
4. Numa altura em que um novo perigoso vírus aí está, todos somos convocados a tomar, serena e racionalmente, as precauções essenciais. E um desses cuidados - embora, claro, não sendo o mais imediato - passa por tentar compreender melhor o corpo e a forma como historicamente as sociedades foram lidando mais ou menos bem, ou mais ou menos mal, com as epidemias. Voltaremos, provavelmente, a falar sobre isto."
Gonçalo M. Tavares, in A Bola
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