terça-feira, 23 de junho de 2020

POR UMA MENINA DE OLHOS DOCES


"João Alves, Luvas Pretas: vi-o fazer passes geométricos que contrariavam toda a teoria euclidiana. Homem de Albergaria-a-Velha, herdou as luvas negras do seu avô, Carlos Alves,que foi durante anos treinador do Alba. Uma sensível história de amor...

Albergaria-a-Velha fica a perto de Águeda, ligeiramente mais a norte. Tem um dos clubes mais distintos da história do futebol em Portugal.
Houve tempos em que havia clubes de empresas. Antes dos tempos mais recentes de clubes-empresa. Outros tempos, portanto. O Alba foi um deles. O mais famoso de todos seria a CUF, que teve filiais em Lisboa e Porto, mas cujo centro foi o Barreiro. A velha CUF do Barreiro dava água pela barba aos grandes de Portugal. Chegou ao topo. Ao topo possível, claro está. À Europa e a uma terrível eliminatória contra o Milan para a Taça das Feiras. Uma eliminatória na qual nunca foi pior do que o seu adversário gigantesco, pelo contrário. Ganhou em casa por 2-0, perdeu fora por 0-1 e, como ainda não havia a regra da diferenças de golos, foi obrigada a um desempate, em San Siro, vejam bem, no qual voltou a perder por 0-1.
A Fundição Alba, fábrica metalúrgica, nasceu no ano de 1929. O seu mentor foi Martins Pereira. O Sport Clube Alba foi fundado no dia 1 de Janeiro de 1941 por funcionários que nela trabalhavam. Tornou-se uma empresa fundamental. Criou instrumentos inovadores, como um fogão de ferro fundido com três bicos que era facilmente transportável. Um sucesso. Não tardou em exportá-los para os Estados Unidos, onde Martins Pereira possuía boa rede de contactos. Estudara em Boston. A fábrica Alba fazia de tudo um pouco: esmagadores para uvas, autoclismos, bancos de jardim, ferros de engomar. Albergaria-a-Velha ganhou um bairro: nele habitavam os quadros da empresa. Em seguida foi a vez de ganhar um hospital. Martins Pereira nascera logo ali ao lado, em Sever do Vouga. Sentia uma obrigação profunda em ajudar as gentes da sua terra.

Avô e neto
Nos anos 70, o Alba participou por cinco vezes na antiga II Divisão. Foram os seus tempos de maior brilho. O meu amigo João Alves, por quem tenho especial carinho, nasceu em Albergaria-a-Velha, onde também nasceu o meu pai e um dos meus tios. João António Ferreira Resende Alves. No dia 5 de Dezembro de 1952. Foi de Albergaria que veio para Lisboa para ser júnior do Benfica. Trazia no corpo e na alma a paixão que o avô lhe legara: Carlos Alves Júnior fizera o caminho inverso. Nasceu em Lisboa, no dia 10 de Outubro de 1903, jogou no Carcavelinhos, em seguida foi para o Porto, para o Académico e, ais tarde, para o FC Porto. Ficou conhecido como Luvas Pretas. Um hábito que ganhou, o de jogar sempre de luvas pretas. E que João, o neto, também carregou ao longo da sua carreira.
O hábito, explicou o próprio Carlos Alves, à revista Stadium, essa publicação fantástica que já fazia da imagem, da fotografia, o centro dos acontecimentos. As palavras são do próprio: 'No princípio da minha carreira, teria uns 17 ou 18 anos, momentos antes de iniciar um jogo contra o Casa Pia, no campo do Restelo, uma rapariga conhecida pediu-me que calçasse as suas luvas - umas luvas pretas, de seda. Achei o pedido bastante original e, caprichoso - e recusei. Mas que pode recusar um rapaz daquela idade a uma rapariga de olhos meigos? Não tive outro remédio senão fazer-lhe a vontade... Fui o último da fila indiana a entrar em campo. Muito envergonhado e de mãos atrás das costas, adivinhava os piropos que a multidão me dirigiria. E, claro, não me enganei. As luvas pretas deram no goto daquela gente, mas como o meu clube - o Carcavelinhos - venceu por 3-1, depressa esqueci os galanteios que ouvira para tomar aquelas luvas como uma definitiva mascote. E eis tudo. De uma coisa simples, surgiu uma tradição'.
Longa tradição. Carlos Alves foi um dos heróis de Amesterdão, a primeira grande aventura da selecção nacional de futebol que arrancou uma bonita participação nos Jogos Olímpicos de 1928. O neto, que sempre teve por aquele avô uma predilecção especial, seguiu a tradição da menina de olhos doces. Talvez houvesse algo dessa alma feminina na forma como sempre tratou a bola com carinho e desvelo. Uma vez, ouvi num desses programas televisivos que na maior parte dos casos me conduzem quase à morte por tédio ou, noutros, me provocam borborigmos no estômago, o Rodolfo atirar à cara do João Alves uma ofensa que até a mim me doeu: 'Tu nem sequer eras titular no Benfica!' Claro que Rodolfo sabia bem do que falava. Tentou apenas achincalhar um dos mais elegantes mestres que passaram pela Luz, um dos mais perfeitos profissionais do passe longo e bem medido. Não sei se, nesse momento, o João, meu querido João, o ignorou, o desprezou ou, pura e simplesmente, nem perdeu tempo a ouvi-lo. Rodolfo pode ter sido capitão do FC Porto, mas a sua qualidade era medíocre. Vê-lo tentar dominar uma bola ao lado de Oliveira, que fazia o que queria com ela e com ambos os pés, era como ouvir o riscar de um ferro num quadro de lousa. Dos pés de João Alves vi saírem elipses inimitáveis, figuras geométricas capazes de desmentir toda a teoria euclidiana. João Alves, que nasceu aqui, em Albergaria-a-Velha, e sente muito orgulho nisso. Como eu sinto orgulho em tê-lo conhecido e um prazer infinito em ter visto a beleza incomparável do seu amor pela bola. Mais do que todas as palavras, só desejava voltar a vê-lo jogar dentro do silêncio de um abraço."

Afonso de Melo, in O Benfica

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