terça-feira, 27 de outubro de 2020

A TÍMIDA VISITA DOS FERROVIÁRIOS



 "Em Setembro de 1974, o Lech Poznan, adversário do Benfica na Liga Europa, estava em Lisboa para jogar com os encarnados. O problema é que os principais titulares benfiquistas tinham viajado para Belo Horizonte, onde conquistaram o Troféu Independência num torneio que também contava com o Sporting.


Nas margens do Warta, ergue-se Poznan. Uma cidade com muita historia para contar. Faz parte da vida do Benfica palminhar a Europa e o mundo nesse seu sentido universal. Poznan ainda não tinha surgido no mapa onde se esperam os pioneses encarnados, mas chegou a hora, e já não era sem tempo.
Dizem as enciclopédias que Poznan ganhou o nome à custa de um nome. Isto é, vem do particípio da expressão polaca poznany, traduzida por alto como 'aquele que é assim conhecido'. Nos tempos perdidos do início dos anos 1000, já o lugar surgia nas Crónicas de Thietmar, o príncipe-bispo de Merseburg, e o seu nome oficial é Stoleczne Miasto Poznan, velho centro político desse pedaço de Polónia ao qual chamaram a Grande Polónia. Depois da invasão alemã e da barbárie da I Grande Guera, ganhou também o apodo de Posen, que nestas coisas de ocupação os alemães não dão nada por aquela palha a tratam de deixar uma marca indelével, geralmente sublinhada a sangue.
Por seu lado, o Lech, adversário do Benfica nesta fase de grupos da Liga Europa, data de 1920, ano em que um grupo de jovens activistas católicos decidiu organizar-se em clube dando-lhe o nome de Towarzystwo Sportowe Liga Debiec, mais tarde transformado em Kolijowy Klub Sportowy Lech Poznan. São nomes de criar cãibras na língua, bem sei, mas esse é o custo de quem parte em direcção a lugares que a Terra mantém mais esconsos. Deixemo-nos, portanto, de cerimónias. É do Lech que se trata, tratemo-lo por Lech. Até porque, ao longo da sua existência, mudou várias vezes de nomenclatura, sobretudo quando ficou umbilicalmente ligado à companhia de caminhos-de-ferro da Polónia e ganhou o apoio de Kolejorz - os Ferroviários.

Lá longe...
No dia 2 de Setembro de 1974, o Lech Poznan estava em Lisboa. A Revolução do 25 de Abril abriria, finalmente, os caminhos do Leste, até então vistos como mais ínvios do que os caminhos do Senhor. Os Ferroviários tinham sido convidados para participar num torneio, mas as coisas não correram lá muito bem. A Associação de Futebol de Lisboa patrocinou o evento e encaixou os polacos juntamente com três clubes da capital, o Benfica, claro está, o Atlético e o Oriental.
Foram precisamente estes dois a entrar em liça primeiro, sem grande vontade de enfrentarem a noite fresca e o público rarefeito, contentando-se em manter o 0-0 o tempo que foi possível, chegando com o nulo ao final dos 90 minutos e ficando o Atlético apurado por desempate de grandes penalidades - 5-4. Em seguida disputou-se o único Benfica - Lech Poznan da história do futebol até aqui. Outra estucha. Novo 0-0, mastigado como pastilha elástica com três ou quatro dias de gengivas. Benfica na final, também por grandes penalidades, no caso, 4-3.
Como vêem, estamos perante um frente-a-frente que só na última quinta-feira começou a fazer verdadeiramente parte do areópago do futebol europeu. A razão explica-se com facilidade: nesse mês de Setembro de 1974, o Benfica deslocara-se ao Brasil para uma daquelas digressões que costumavam contribuir, e muito, para encher os bolsos do clube. Deixara em Lisboa uma equipa de reservas na qual já despontavam algumas das grandes figuras para cumprir o calendário - como José Henriques, Eurico ou Shéu - e partira para o lado de lá do Atlântico sem ligar grande importância ao tal torneio organizado pela AFL e que, ainda por cima, decorreu no Estádio da Luz.
As forças estavam concentradas em Belo Horizonte.
Os encarnados haviam viajado para defrontar dois grandes clubes brasileiros da cidade, o Cruzeiro e o Atlético Mineiro. Dois jogos, duas vitórias: 2-1 e 1-0. Longe de Lisboa e do lech Poznan, estavam Bento, Artur, Humberto Coelho, Barros, Messias, Toni, Eusébio, Simões, Nené, Vítor Baptista, Jordão e Moinhos por exemplo. Uma amostra clara de que os jogos em território brasileiro valiam bem mais do que um joguinho meio sinistro contra os tais Ferroviários que tinham vindo de Poznan cheios de boa vontade, como se calculava.
Além disso, em Belo Horizonte, também se disputava uma espécie de quadrangular, embora sem direito a final, e andava por lá o grande rival Sporting, o que prometia, desde logo, esforços suplementares para fazer melhor figura do que os leões. Assim aconteceu, porque o Sporting não foi além de um empate frente ao Atlético Mineiro (2-2) e, em seguida, foi severamente sovado pelo Cruzeiro (0-6). Mais um troféu para a sala de taças de Dona Águia: o Troféu Independência, que servira para comemorar o 9.º aniversário do Estádio do Mineirão.
Quanto ao Lech Poznan, teria de esperar. Até agora..."

Afonso de Melo, in O Benfica

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