quinta-feira, 3 de dezembro de 2020

"SEGULORA Y HABANA, 4310, 7º PISO"



 "«Segurola y Habana, 4310, 7.º piso. Vamos ver se ele dura 30 segundos.»

O regresso de Maradona ao Boca Juniors, em outubro de 1995, terminou a ferver.
De tal forma que, no final desse jogo contra o Colón, El Pibe revelou em direto para toda a Argentina a sua morada e marcou ali mesmo, com microfones e câmaras de TV, um ajuste de contas com Julio César Toresani, o médio com quem acabara de ter um arrufo no relvado da Bombonera.
A direção do triplex naquele cruzamento de um bairro rico de Buenos Aires ficou tão famosa que, na adolescência, Dalma, filha de Diego, já nem precisava de abrir a boca sempre que apanhava um táxi. Fosse qual fosse o motorista, a pergunta precedia as mãos no volante: «Segurola y Habana, no?» 
Toresani era valente, mas só reencontrou com Diego na época seguinte, quando foi contratado para reforçar precisamente o Boca Juniors.
Ficaram amigos.
Por cada golo de antologia de Diego, há um episódio para o imaginário do futebol argentino, italiano, mundial que o tem como protagonista.
Não é só o talento, é o carisma. É conjugar a arte quase teatral e a espontaneidade mais inconsciente. É ser génio e louco. Em Maradona é a glória e a decadência que nos atrai.
Que estrela do futebol mundial organizaria, por exemplo, um jogo de beneficência num lamaçal, enfrentando o próprio clube, para ajudar uma criança doente?
Maradona foi do melhor que o mundo já viu com uma bola nos pés? Ninguém duvida. 
Messi também.
Aliás, para Lineker, melhor marcador do México’86, que viu o golo do século e a mão de Deus à boca de cena, Lionel alcançou o impensável: ultrapassar Diego.
Objetivamente, Messi tem na sua carreira mais do triplo dos títulos (falta-lhe o tal Mundial com a Argentina, mas já ergueu quatro Ligas dos Campeões, por exemplo), mais do dobro dos golos (acima de 700) e leva mais de década e meia a fazer a diferença na ribalta do futebol mundial.
No entanto, o campeonato de Maradona é o da transcendência para lá das quatro linhas. Como nenhum outro, ele tornou-se num símbolo de rebeldia, um líder dos de baixo, fossem eles do bairro de lata de Villa Fiorito, os renegados do Sul de Itália ou fervorosos bosteros.
Maradona tem uma aura gloriosa e trágica, como Garrincha ou Best, também desaparecido num 25 de novembro.
É esse cruzamento entre o dom divino e os defeitos mais terrenos que o torna numa personagem com uma tão densa carga dramática e numa incomparável figura da cultura popular. Por algum motivo não há futebolista que tenha mais livros, filmes ou canções que lhe são dedicadas.
Voltando a Toresani: suicidou-se há um ano e meio. O desemprego e o divórcio tinham-no levado a um quadro depressivo agudo.
Quando o outrora inimigo de circunstância morreu, Maradona vociferou contra o River e contra o Boca, por terem deixado à sua sorte um seu antigo profissional. Contra a federação argentina também.
Sentiu também necessidade de se justificar. Até teria pensado em contratá-lo como seu adjunto para o Dorados de Sinaloa: «Não sabia que o seu estado era tão grave.»
Quando Toresani morreu, Maradona deixou uma mensagem ao filho dele, de 11 anos: «Agora és o chefinho. Quando estiver em Buenos Aires quero encontrar-te para ver se jogas como o teu querido pai. Sabes que éramos inimigos, mas acabámos amigos. O teu pai era um homem fantástico.»
Em Maradona a fúria não se transformava em rancor. Todo ele era controvérsias e paixões.
Quando Maradona morreu, o cruzamento entre Segurola e Habana encheu-se de adeptos. Entre cânticos e palmas, penduraram flores nos postes e autocolantes nas placas, rebatizando as duas artérias.
Na última semana, a comuna 11 de Buenos Aires passou a ser a 10 e «Segurola y Habana» tornaram-se nas avenidas «Diego y Maradona».
Entretanto, ontem, corria pela internet uma petição para que a rua 10 da cidade de La Plata seja oficialmente designada como «calle Maradona».
Assinei-a na hora.
Como pode a toponímia resistir à vontade do povo?

P.S.: sobre o adeus a um homem sábio e bom como Vítor Oliveira não há nada a acrescentar ao silêncio que nos permite escutar este sentido testemunho do seu amigo Henrique Calisto."

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