"Comecemos por uma evidência: numa bancada de um jogo de futebol dá-se, num repente e como por encanto, uma cataléptica irmanação emocional entre todos os representantes dos diferentes segmentos da sociedade - como se um primarismo pulsional a todos unificasse e fundisse num espaço magmático de indiferenciação social. Por alguma razão o nosso escritor-filósofo, Vergílio Ferreira, asseverava que “o futebol é a única sociedade sem classes conhecida” - sim, porque a outra, a política, mantém a conveniente aura de cantante utopia.
Mas importa uma verificação mais: nos começos deste surpreendente e magnético desporto, as coisas não eram bem assim: ia-se, em clima de romaría, ao espectáculo de futebol de domingo à tarde na sequência ritualística da missa a que se assistira pela manhã. As fotos das multidões apinhadas à volta das Falésias ou das Amoreiras mostram como a maioria trajava a rigor para o efeito: homens, sim homens, que, pela rijeza das pelejas, o futebol começou por ser coisa de homens de barba rija, de chapéu e irrepreensivelmente engravatados - alguns de colete e relógio de bolso e tudo.
O campo de futebol era então um espaço de fascinatória magia e até de uma difusa sacralidade: de paixão, seguramente, mas de respeito também. Mas, quando a paixão levou de vencida o respeito e se expandiu como uma epidemia, encetou-se um perigoso processo irruptivo do que, no baixio das gentes se mantivera de certo modo reprimido por força da acção controladora do fisco social - e eis que veio à tona o já referido primarismo pulsional, forjando, com inquietante eficácia, aquilo que Gustave Le Bon consagrou como a constitutiva imbecilidade das multidões, ao verificar que há sempre uma “unidade mental” a caracterizá-las.
Se, nos primórdios, todos caprichavam para se apresentarem no evento vestidos a rigor, agora todos se esforçam, rigorosamente, por se apresentarem o mais informalmente possível - e é essa informalidade que dá forma e conteúdo a esta curiosa sociedade sem classes. Vejamos, entretanto, algumas razões que ajudem a explicar a popularidade do futebol:
Desde logo, o teor flagrantemente transgressivo da sua gestualidade-padrão: o facto inusitado e estranho de ser jogado não com as mãos do “homo habilis”, o “instrumento de civilização “ (Diógenes de Laercio), mas com os pés, essa parte do corpo tão pouco prestigiada na panóplia da instrumentalidade humana: o máximo de reconhecimento vem-lhes do seu papel na locomoção. Mas este rasgo de tamanha subversão é que explica o generalizado espanto e o fascínio por tão bizarro jogo.
Por isso, o estádio detinha a exclusividade simbólica, pois era lá onde toda a magia acontecia: o campo concitava todas as atenções, porque era nesse enlameado palco que o tropel das emoções irrompia. Em sentido contrário e com a captura do espectáculo pelos “média”, deu-se a dinamitação do espaço público do jogo e, com isso, a diluição da originária matriz multitudinária do espectáculo futebolístico que passou a ser massivamente oferecido ao domicílio e em pacotes de conveniência: um espectáculo cada vez mais padronizado e asséptico - a coreografia bélica vem sendo substituída por um tabuleiro de xadrez, silencioso, entediante e, pior que tudo, fraudulento.
A rusticidade e a virilidade dos primórdios têm vindo a dar passo a um aparentemente irreversível processo de descaracterização dum futebol cada vez mais encenado e menos jogado: a moda da cotovelada sem tocar sequer no adversário virou versão manhosa da clássica dor de cotovelo, sem dúvida, uma das maleitas mais estimadas pelos portugueses. Sim, a coreografia do cotovelo com a sonoridade estridente do grito fingido é o bastante para fazer parar a dança e fazer entrar em campo uma junta médica e meia dúzia de fisioterapeutas, quando não a ambulância dos bombeiros; isto tudo enquanto o inditoso campeão lança um olhar furtivo por baixo do cotovelo (sempre o cotovelo!), para avaliar o efeito da sua farsa - e confirmar que o homem do apito está suficientemente comovido: uma vigarice!
O futebol, matricialmente multitudinário e apaixonante, está a ficar cada vez mais parecido com um recreio de noviças - saltinhos e guinchos. Tudo ao serviço da manha e da ratice que, por sua vez, servem o moderno deus - o lucro. Com a ausência do público nas bancadas, a farsa torna-se mais sonora e grotesca. E dou comigo a sentir saudades daquele outro tempo - o do garrafão e dos tremoços. Já para não falar nas bifanas e nos coiratos."
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