quarta-feira, 30 de junho de 2021

A MODELAÇÃO DE JOGO PELAS EQUIPAS DE FUTEBOL

 


"A discussão em torno das ideias, modelos e sistemas de jogo no futebol é, nos dias de hoje, comum. Não raras vezes, esta discussão sustenta-se num mau entendimento sobre o significado de cada um destes conceitos que, se tratados com banalidade, resultam invariavelmente em reflexões ambíguas e pouco esclarecidas. Ao longo deste artigo procurarei refletir acerca de alguns dos conceitos que estão na base da modelação de jogo de equipas de futebol.

Nota prévia
Apesar de atual, o conceito de modelo de jogo não é novo. Não sendo objetivo desta peça descrever a sua evolução histórica, importa referir que autores clássicos da área do treino desportivo como Léon Teodorescu já refletiam sobre a sua importância ainda nos anos 70 do século passado. O importante trabalho que treinadores como Carlos Queiroz, Jesualdo Ferreira e Nelo Vingada desenvolveram no antigo ISEF (agora Faculdade de Motricidade Humana) e que contribuiu de forma importante para a reformulação dos conteúdos de formação de treinadores em Portugal, teve como ponto de partida muitos destes conceitos que foram sendo continuamente aprofundados no nosso país por autores importantes como Júlio Garganta, Jorge Castelo e muitos outros.

Da Ideia ao Modelo de Jogo
É frequente ouvirmos adeptos, comentadores e até treinadores referirem-se aos conceitos de “ideia de jogo” e “modelo de jogo” como se de um sinónimo se tratassem quando, em bom rigor, estão longe de o ser. O primeiro é um conceito bastante mais simples e que se traduz essencialmente na forma como o treinador responde à seguinte questão: como é que eu gostava que a minha equipa se comportasse em cada uma das fases, etapas e momentos do jogo? A resposta a esta questão resulta fundamentalmente do modo como o treinador interpreta a própria lógica interna do jogo – outro conceito fundamental que deixarei para um próximo artigo – e, em função dessa interpretação, concebe uma determinada ideia sobre a organização da sua equipa. É caso para dizer que ideia de jogo, cada treinador tem a sua. Para além do modo com o treinador interpreta o jogo, também outras características como as experiências anteriores, crenças pessoais e, inclusive, a sua filosofia de vida e os seus traços de personalidade podem contribuir para a construção desta ideia.
Da ideia ao modelo de jogo, contudo, há todo um caminho a percorrer. Se a primeira depende essencialmente do treinador, já o segundo depende da interação de um conjunto de fatores, entre os quais se destacam a própria ideia de jogo do treinador e (muito importante!) as características dos jogadores. A discussão sobre se o treinador deverá ajustar a sua ideia às características dos jogadores ou, por outro lado, são os jogadores que se devem adaptar à ideia do treinador não cabe neste artigo. Contudo, o que me parece menos discutível é que os jogadores são diferentes uns dos outros a vários níveis e, portanto, sendo os principais atores do jogo, a aplicação de um determinado modelo só poderá resultar tendo também em consideração as suas características. Para além das características do treinador e dos jogadores, também as características contextuais influenciam a conceção do modelo de jogo, como por exemplo fatores culturais associados ao país ou ao próprio clube, o tipo e o formato da competição e os próprios objetivos competitivos definidos. Assim, podemos perceber que o modelo de jogo é um conceito bastante mais complexo e que, embora a ideia do treinador constitua a base fundamental para a definição dos princípios que vão orientar os comportamentos da equipa, a sua operacionalização propriamente dita só emerge efetivamente da relação entre todas estas características que acabámos de referir. É também por esta razão que não é possível haver dois modelos de jogo exatamente iguais, mesmo com o mesmo treinador.
Mas o que se entende afinal por modelo de jogo? O modelo de jogo não é mais do que o referencial através do qual os jogadores combinam e coordenam os seus comportamentos competitivos, de acordo com um conjunto de princípios de ação definidos pelo treinador e a que designamos de princípios de jogo. Estes princípios orientam (não determinam!) os comportamentos individuais e coletivos no decorrer do jogo e possuem associadas determinadas intenções que traduzem a forma como a equipa irá procurar comportar-se (do ponto de vista estrutural e funcional) nas diferentes fases, etapas e momentos do jogo. Não será demais reforçar que, no respeito da natureza complexa e dinâmica que caracteriza a lógica interna do jogo de futebol, os princípios associados ao modelo de jogo devem ser entendidos como orientadores e não como determinantes dos comportamentos. Significa isto dizer que não devemos olhar para os princípios de jogo como um conjunto de soluções fechadas pré-determinadas, mas, ao invés, como um conjunto de orientações que atribuem um fator de direccionalidade aos comportamentos competitivos da equipa. Comportamentos esses que, efetivamente, resultam não exclusivamente dos princípios de jogo definidos, mas também das relações de cooperação e oposição que se estabelecem na confrontação entre as duas equipas no decorrer de um jogo.
Uma outra noção importante é a de que a operacionalização do modelo de jogo tal como é idealizado nunca chega efetivamente a acontecer. Pelo menos não na sua plenitude. Em primeiro lugar porque os comportamentos competitivos possuem uma natureza emergente, como já referimos, que resulta de interações que se desenvolvem em contextos e condições de aplicação que nunca são exatamente iguais; e em segundo porque o modelo de jogo é um referencial que está em constante evolução, cresce com a própria equipa e com o rendimento individual dos jogadores e é feito de avanços e recuos na sua operacionalização através do processo de treino.

O papel do Sistema Tático no Modelo de Jogo
O sistema tático caracteriza a organização estrutural de base da equipa e a sua importância está relacionada com a atribuição de funções e tarefas aos jogadores. A escolha por um determinado sistema deve ter em consideração a aplicação dos princípios que compõem o modelo de jogo e as características dos jogadores que o compõem. Assim, é o sistema tático faz parte do modelo de jogo e não o contrário. É por isso que um mesmo modelo de jogo pode utilizar diferentes sistemas táticos preservando os seus princípios essenciais. Não faz sentido retirar importância ao sistema tático para valorizar as chamadas “dinâmicas” coletivas na medida em que este também contribui de forma importante para organização funcional da equipa, nomeadamente através da promoção de determinadas interações entre jogadores decorrentes das suas funções (dimensão funcional) e dos espaços que ocupam predominantemente (dimensão estrutural). Mesmo quando assistimos a variações na organização estrutural da equipa em diferentes fases ou etapas do jogo (por exemplo a atacar e a defender), percebemos que essas adaptações não são totalmente independentes do sistema tático de base. Além do mais, a utilização de diferentes configurações estruturais constitui um importante fator estratégico, permitindo uma maior adaptabilidade ao jogo da equipa adversária – aqui entendida como uma adaptabilidade disruptiva, ou seja, que permita condicionar o adversário e ganhar uma vantagem competitiva."

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