"«Se parece um pato, caminha como um pato e fala como um pato, cozinha-o.»
Michael Palmer (1)
No dia 5 de setembro de 1972, em plenos Jogos Olímpicos de Munique, oito elementos palestinianos do grupo «Setembro Negro» invadiram e atacaram as instalações onde se encontrava acomodada a comitiva de Israel na aldeia olímpica. Com duas mortes de imediato, nove israelitas foram feitos reféns, tendo sido os jogos suspensos durante o dia. Às nove da noite, uma intervenção de resgate mal sucedida revelava o resultado: a morte dos nove reféns, de quatro árabes e de um polícia alemão. No dia seguinte os jogos foram reatados. Como teria dito na altura (já lá vão 50 anos!) o campeão olímpico de 1936, Jesse Owens, «montou-se uma feira em cima de um cemitério»!
Vem este episódio a propósito de uma nova feira montada em cima de um outro cemitério...
Há doze anos que o Qatar foi escolhido pela FIFA para organizar o Campeonato do Mundo de Futebol de 2022. Um país sem tradições no futebol, colocado em 50º lugar no ‘ranking’ das selecções nacionais da FIFA (num Mundial com 32 países representados) e em que a mesma é uma manta de retalhos de jogadores naturalizados, nunca chegaria a um Mundial… a não ser que fosse o país organizador. Uma demonstração do poder do dinheiro!
Envolta a atribuição deste Mundial em acusações de corrupção desde o início – o New York Times chegou a citar uma testemunha que afirmou que o presidente da Federação Argentina de Futebol se queixou de não ter recebido os 80 milhões prometidos para votar a favor da candidatura deste país ao Mundial de 2022 («Público», 21.10.2022) –, o próprio Joseph Blatter admitiu que a escolha do Qatar como país organizador do Mundial 2022 «teve influências políticas directas», acrescentando que «Chefes de Governo europeus aconselharam os representantes dos seus países com direito de voto a pronunciarem-se a favor do Qatar, porque estavam ligados a esse país por interesses económicos importantes» («Público», 18.09.2013). Joseph Blatter que veio agora admitir que a escolha do Qatar foi um erro…
Presume-se que rondem os 220 mil milhões de dólares o custo da construção dos oito estádios (com sistemas de ar condicionado devido ao clima desértico do país, o que também impôs a realização do campeonato no Inverno e não, como é costume, no Verão) e de todas as infraestruturas necessárias envolventes. Mais uma vez, o poder do dinheiro…
Este é o campeonato que vai ficar conhecido pelo Mundial da hipocrisia. Ou pelo Mundial da vergonha. Ou pelo «campeonato que não deveria realizar-se» (2).
Maurizio Sarri, treinador da Lázio, declarou o seguinte: «O Mundial no Qatar é um insulto ao futebol. Gostaria que alguém explicasse o que o Qatar pode trazer para o futebol, excluindo o dinheiro para o Manchester City e o Paris Saint-Germain» («A Bola», 12.11.2022).
Mas uma sociedade que não respeita os direitos humanos, em que a dignidade é retirada aos trabalhadores, em que só se pode consumir bebidas alcoólicas no recato da privacidade, em que manifestações de afecto não são permitidas em locais públicos, que discrimina negativamente as mulheres, em que os direitos dos homossexuais não são reconhecidos, em que fotografias só são permitidas com permissão e em que jornalistas não podem fazer livremente as suas reportagens acaba por ter os seus aliados no ocidente: a Dinamarca solicitou à FIFA autorização para treinar no Qatar, durante o Mundial 2022, com os jogadores envergando camisolas com o 'slogan' «Direitos Humanos Para Todos». Resposta da FIFA: negada a pretensão! Por que terá sido? Talvez porque a FIFA preveja que vá arrecadar a quantia de 5,9 mil milhões de euros… De novo o poder do dinheiro!
O jornal britânico «The Guardian» revelou que mais de 6.500 migrantes do sul da Ásia morreram no Qatar na última década (3) no que tem sido secundado pela Amnistia Internacional… São mais do dobro dos mortos no atentado de 11 de Setembro. São 813 mortos por cada estádio. São 203 mortos por cada país participante. São 9 mortos por cada um dos jogadores seleccionados. Temos, de facto, uma nova feira montada em cima de um outro cemitério...
O que fazer? O que fazermos? Uns propõem um boicote ao Mundial (os adeptos do Bayern, do Dortmund e do Porto já se manifestaram publicamente). Outros propõem uma discussão sobre o assunto (Jorge Valdano, em «A Bola» de 29 do mês passado, avança com uma televisão na sala de aula, argumentando que «trinta e duas selecções dão para falar muito de Geografia e de História: um Mundial no Qatar poderia abrir um debate interessante sobre direitos humanos…»). No mínimo, ignorarmos, não divulgarmos ou não condenarmos será sermos coniventes! Será irmos à feira sobre esse cemitério!
Jurgen Klopp, treinador do Liverpool, foi bastante lúcido quando declarou que «todos sabemos como aconteceu e todos deixámos acontecer» («O Jogo», 06.11.2022). Todos somos culpados, principalmente aqueles que vão suportar este mundial através da sua presença (estima-se que já se tenham vendido três milhões de bilhetes) e aqueles que vão publicitar a sua empresa ou o seu produto no mesmo patrocinando o evento ou as selecções nacionais. Principalmente os adeptos do espectáculo, os defensores da paixão.
O que nos faz lembrar o seguinte conto oriental:
«Um discípulo queria reduzir tudo ao entendimento. Só confiava na razão e estava preso na jaula da sua própria lógica asfixiante. Visitou um sábio e perguntou-lhe:
– Mestre, o que é que sustém o mundo?
E o mestre respondeu-lhe:
– Oito elefantes brancos.
– E quem suporta esses oito elefantes brancos?
Inquiriu de novo o discípulo intrigado.
O mestre respondeu-lhe então:
– Outros oito elefantes brancos.»"
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