terça-feira, 29 de setembro de 2020

VOGANDO PELO PASSADO SOB A BRISA DA TARDE



 "Absolutamente revolucionária a revista Stadium, sobretudo no aspecto gráfico, que estava muitos anos adiantado no tempo. É um consolo poder abrir as suas páginas e ler toda uma prosa respeitadora da ortografia e da sintaxe sobre a tarde de um Benfica - Sporting de 1942.


Folhear jornais antigos é um prazer imenso para mim, que gosto do papel e me entristece perceber que as edições impressas vão num caminho sem retorno. Pego nas páginas amarelecidas e perco-me no tempo. No tempo em que a linguagem jornalística obedecia a um requinte de elegância irrecusável, no tempo em que não era apenas o espectáculo desportivo que monopolizava o interesse do repórter, no tempo em que quem redigia se preocupava com tudo o que rodeava os artistas e os espectadores. O tempo mudou. Cada vez mais os relatos de um jogo registados a letra de imprensa são mais pobres, mais vulgares, mais repetitivos, sem excitação e sem vida. Uma espécie de funcionalismo público tomou de assalto os nossos cronistas e reduziu-lhes a prosa à banalidade. Por isso, que satisfação ter, neste momento, à minha frente, por exemplo, a edição de 9 de Dezembro de 1942 de Stadium, uma publicação graficamente tão revolucionária, que ainda hoje seria rainha das bancas graças às suas primeiras páginas espectaculares.
Reparem. Toda a capa desta Stadium se resume a um lance. A foto abre-se num esplendor emocionante. E, em letras pequenas, a legenda: '... Foi assim que se marcou o 2.º tempo do Sporting. Mourão, num esforço de grande beleza atlética, parece empurrar levemente a bola que, afinal, foi rematada em conclusão de uma avançada veloz... Francisco Ferreira não consegue deter o extremo adversário'.
Benfica - Sporting, claro está!

Por aí fora...
Numa página interior, aconselha-se o leitor: 'Assine a revista Stadium, o mais fiel depositário do movimento desportivo do país. Preço de assinatura: 3 meses - 19$50; 6 meses - 39$00; 12 meses - 78$00'. Não tenho dúvidas de que valia a pena. Até porque, felizmente, tenho um acervo muito razoável delas. Depois, vem a crónica do dérbi, desenhada em letras que respeitam profundamente a ortografia e a sintaxe: 'O Benfica-Sporting, o cartaz berrante que atrai multidões, o embate que faz vibrar e prende as atenções do público desportivo do país inteiro, revestia-se desta dum interesse especial. Integrado, por capricho do destino, na penúltima jornada do campeonato lisboeta - à qual chegaram em igualdade de pontuação e de esperanças os três maiores -, este encontro destinava-se a ter influência quási decisiva para a adjudicação do ambicionado título e era, para um dos protagonistas, o Sporting, um caso de vida ou de morte'.
Três maiores porque o Belenenses se contava entre eles, claro está. De resto, no seu estilo com algo de gongórico, reconheça-se, o repórter Rui de Lisboa explicava logo a abrir o que estava em disputa. E ia por aí fora. 'Aos leões só servia a vitória para continuarem na prova, restando-lhes depois, para a conservação do título da sua predilecção, precaverem-se contra o Atlético no dia de fecho da competição. Um simples empate daria ao Belenenses - Benfica do domingo imediato foros e categoria de uma final'.
O Sporting venceu o Benfica por 3-2 e, depois, o Atlético por 6-0. O Belenenses bateu o Benfica por 4-1. Título para os de Alvalade com dois pontos de vantagem sobre os encarnados. Assim se escreve a história dos grandes clubes, e o Benfica não é excepção. Não há que menorizar o momento de derrotas que foram vividas e lutadas como vitória. Oram vejam: 'O Benfica só se convenceu quando soou o apito final. Durante a hora e meia da luta, batalhou enérgica e decididamente pelo empate que já lhe bastava, ainda que não fosse o resultado ideal. Encontros como este, em que os jogadores gastam generosamente as suas e energias e em que o público aficionado vive e se mantém interessado até ao último minuto, constituem sempre excelente propaganda do belo jogo inglês - viril, másculo, aliciante - que não dispensa, além da habilidade natural, a preparação física cuidada, o gosto e a inteligência dos seus praticantes'.
O Benfica foi o primeiro a marcar ao quarto de hora, por Manuel da Costa a passe de Teixeira. No minuto seguinte, Mourão, bem desmarcado por um lançamento de Daniel, estabeleceu o empate. Dez minutos mais tarde, Mourão repetia a proeza. A meio da segunda parte, os leões aumentaram a vantagem, Pedro Pireza foi autor de um pontapé supimpa que Martins não conseguiu defender. Brito bateu Azevedo com o shot rasteiro e certeiro para fechar o resultado final. 'Portanto, e de uma maneira geral, os rapazes de vermelho não desmereceram a confiança dos seus simpatizantes. Foram ligeiramente inferiores sob o aspecto técnico aos seus vencedores - o bastante para justificar o resultado - mas o seu comportamento, aliás de aplaudir, teve ainda o mérito de mais valorizar o resultado alcançado pelos actuais campeões de Lisboa'.
Fecho a revista como se tivesse acabado de ler o periódico doa dia. Sinto um consolo por ter existido gente que escrevia assim e poder recuperar as suas prosas. Arrumo-a na pilha de papel erguida cuidadosamente por ordem cronológica. A tarde correu-me bem..."

Afonso de Melo, in O Benfica

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