segunda-feira, 22 de maio de 2023

O DEMÓNIO DAS PISTAS



 "Armando Bó inventou a nudez feminina frontal no cinema argentino mas não resistiu a fazer o papel de Fangio antes deste ser Fangio.


A porcaria da pandemia, e eu nem posso queixar-me muito do estado forçado de recolhimento já que foi dividido entre Alcácer do Sal e o Montalvo onde o meu mano Francisco Febrero (por extenso Xitó) estava por sua vez confinado e, ali, entre a minha casa e a dele - com almoços dominicais no jardim da Dália e do Fernando -, afastou-me tanto do cinema que nos últimos tempos escrevo bem mais sobre ele do que ponho os pés numa sala. Enfim, com cantava Alcione
«São coisas do mundo
Retalhos da vida
São coisas de qualquer lugar
Mas se eu fico mudo
Esse mundo imundo
É capaz de me tentar mudar».
Insisto comigo mesmo e não mudo. Já vos falei de Pelota de Trapo e de Pelota de Cuero, que têm em comum Armando Bó. A tarefa prolonga-se...
Bó, que morreu com apenas 61 anos em outubro de 1981, foi um mamífero interessantíssimo para quem gosta de personagens do género. Ao contrário do que aconteceu com a grande maioria dos seus amigos de infância era apaixonado pelo basquetebol, jogou durante alguns anos no Sporting Club de Villa Ortúzar, e atirou o futebol para um papel secundário. Mas argentino que é argentino não resiste ao chamado da pelota. Quando tomou o caminho do cinema, fazendo de tudo um pouco - ator, guionista, compositor e, acima de tudo, diretor - não resistiu a ter um papel fundamental em dois filmes que tiveram o futebol como pano de fundo: Pelota de Cuero e Pelota de Trapo. Mas não foi por eles que ganhou fama. Na verdade a grande revolução que Armando Bó trouxe para o cinema argentino foi a nudez. Nunca ninguém se tinha atrevido a tanto e aqueles que se atreveram a andar lá por perto foram marcados pelas comissões de censura. Mas El trueno Entre las Hojas, de 1957, deixou a malta de boca aberta, e muito a aguar, pelo descaramento de uma das suas atrizes preferidas, Hilda Isabel Gorrindo Sarli, que não se fez rogada em surgir num espetacular nu integral e frontal. Hilda não era nada de se deitar fora, bem pelo contrário, chegou a ser miss Argentina e Miss Mundo, pelo que as filas para a verem sem nada que lhe tapasse as partes pudendas davam a volta aos quarteirões vizinhos das salas de cinema nas quais o filme foi exibido. Armando não resistiu a ser apenas o homem atrás da câmara. Vendo bem, como responsável pela obra, não perdeu a hipótese de ser igualmente ator e dividir algumas cenas com a extremamente sexy La Coca Sarli, como todos a conheciam. Levante o braço aquele que o acuse de mau gosto.
Bó ficou permanentemente ligado a filmes eróticos. Mas a sua grande amizade com o jornalista desportivo uruguaio Ricardo Lorenzo Rodríguez, que emigrou para Buenos Aires onde se transformou numa pena implacável no jornal El Gráfico assinando com a alcunha de Borocotó, atiraram-no para os braços da filmografia ligada ao futebol sul americano. Mas não só. Em 1950, um argentino fascinava o universo não pela forma como dominava uma bola com uma técnica inimitável mas sim como se tornara um fantástico ás do volante. O seu nome era Juan Manuel Fangio. E ficou para a eternidade. No dia 27 de outubro de 1950, no pomposo Cine Ocean, estreou-se Fangio - El Demonio de Las Pistas. Deu brado. Não tinha La Coca Sarli nuazinha de fazer dó, mas contava com outras duas atrizes de beleza indiscutível embora infelizmente vestidas - Eva Dongé e Ivonne de Lys. Armando Bó fazia o papel de Fangio, está claro, e muitas das cenas foram filmadas em Monza, Itália, cabendo ao próprio Fangio protagonizar um prólogo.
Juan Manuel Fangio será para sempre um mito que saltou o risco branco de giz das lendas e se tornou muito mais do que um nome. Não vale a pena discutir quem foi o maior piloto de sempre de Fórmula 1. Porque foi Fangio e ninguém terá tido a protérvia de querer comparar-se com ele. Curiosamente, quando El Demonio de las Pistas encantou os espetadores argentinos, Fangio ainda não havia sido campeão do mundo e limitara-se a ser, nesse ano, segundo classificado do Mundial que foi, ainda por cima, o primeiro de todos até então e conquistado pelo italiano Emilio Giuseppe Farina conduzindo um Alfa Romeo. Apesar disso não restavam dúvidas que Juan Manuel seria em breve o maior de todos e a profecia confirmou-se com os títulos mundiais de 1951, 1954, 1955, 1956 e 1957 (tendo sido segundo em 1953). Nino Farina não teve outro remédio se não aceitar, no ano seguinte, ser o segundo piloto da marca atrás de Fangio, valendo-lhe de pouco acenar a bandeira de campeão mundial.
El Demonio de las Pistas não teve moças desnudas. Mas não foi preciso esperar muito para que La Sarli se despisse outra vez com Bó a dirigi-la. La Sarli e não só. Definitivamente Armando divertia-se mais com outro tipo de cenas e convenceu muitas raparigas a mostrarem as intimidades. Convenhamos que a nudez de Fangio não devia ser, provavelmente, muito chamativa. Não seria por ela que venderia mais bilhetes..."

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