"Um ano após o Mundial de 1990, o tenista Yannick Noah convidou Roger Milla para cantar com ele.
Dominique Claude Rocheteau: chamaram-lhe o Anjo Verde quando, ainda rapazinho, fez parte daquela equipa do Saint-Étienne que jogou a final da Taça dos Campeões contra o Bayern de Munique. Vi-o jogar tantas e tantas vezes, na televisão, depois também ao vivo, e conheci-o num campo de futebol, em Issy-les-Molineaux, quando A Bola com Eusébio e Humberto Coelho e um conjuntos de jornalistas e camaradas que marcaram uma época da Travessa da Queimada defrontou o l’Équipe com Michel Platini e, precisamente, Dominique. Depois houve mais dois jogos, em Lisboa, um na Luz e outro no Estádio Nacional. Rocheteau sempre foi aquilo que os franceses chamam de ‘un gentil garçon’. Platoche, por seu lado, era e continua a ser ‘un vieux blagueur’, ou um ‘chenapan’, se preferirem. Com o primeiro perdi o contacto. Com o segundo, ódio de estimação de tantos portugueses, vou mantendo uma amizade saudável e brincalhona.
Em 1989, o Anjo Verde despediu-se do futebol muito pouco à francesa: uma festa de três dias e três noites em Paris, hotéis cheios de convidados, um jogo de velhas e novas estrelas. A grande figura do acontecimento foi Roger Milla, o camaronês que acordava a cantar e adormecia a dançar, fossem que horas fossem. Seu companheiro de quarto, o argentino Alberto Márcico, espantava-se: «Quando acordei na primeira manhã pensei que estava a dar em maluco – olhei para a banheira e vi aquela figura negra a bailar debaixo do chuveiro como se estivesse numa discoteca. Percebi que não iam ser dias sossegados». Nessa altura, Roger cumpria a sua última época pelo Montpellier e estava decidido a reformar-se. Morrera-lhe a mãe, que ele adorava, e a mulher ficara grávida, estava na altura de mudar algo na sua vida, afinal já estava com 37 anos e apesar de festeiro não era nenhuma criança. Exilou-se. Foi jogar para a Jeunesse Sportive Saint-Pierroise, da ilha da Reunião, perdida no Oceano Índico, a leste de Madagáscar, basicamento onde Judas teria perdido as botas se tivesse tido a decência de as usar. No ano seguinte, Paul Barthélemy Biya’a Bi Mvondo, Presidente dos Camarões e seu amigo de infância, moveu todos os cordelinhos que estavam ao seu alcance, e eram muitos, para o enfiar entre os convocados do russo Valeriy Nepomnyashchiy que comandou a selecção do país no Mundial de 1990, em Itália. O resto é história por demais conhecida. Quem consegue lembrar-se da forma como Milla enganou o enlouquecido Higuita num jogo que marcou o apuramento para os quartos-de-final e comemorou junto à bandeirola de canto com um balancear de ancas capaz de fazer inveja a Josephine Baker, sabe do que estou a falar.
Milla passou definitivamente a fazer parte não apenas da história do futebol como, até, do anedotário do futebol. Quatro anos depois, com 42 anos e 39 dias, fez um golo inolvidável contra a Rússia. Valeu-lhe de pouco, porque os Camarões foram goleados por 6-1 e, ainda por cima, Oleg Salenko assinou cinco golos só à sua conta. Nesse tempo, Roger confessara numa entrevista que, para se manter operacional, deixara de comer carne. Como pilhéria, um jornal inglês tratou de achincalhar a alcunha dos camaroneses: Os Leões Indomáveis, como gostam de se apelidar, passaram a ser Os Leões Vegetarianos.
Não sei se alguém esqueceu verdadeiramente Roger Milla, e se o fez cometeu uma injustiça ao futebol mais selvagem e mais autêntico que passou por todos os Mundiais. Sei que Yannick Noah, tenista vencedor de Roland Garros, fez os possíveis para o manter inesquecível quando, um ano após o Campeonato do Mundo de Itália, publicou um álbum de música no qual_Saga África era a canção ‘piéce de résistence’. Convidou Roger para se juntar a ele, embora a voz do camaronês fosse do timbre da de um devorador de bagaços.
«François Omanbiyik amortit et glisse un zolo
Deux zolos et passera Milla
Milla dribble la balle, un dribble
Qui sort des laboratoires
Foot balistiques d’Etudi
L’affaire est grave, il tire au goal
Il y est!».
Quantos jogadores ficaram eternizados em canções?, eis uma pergunta à qual não sei responder embora já tenha trazido um bom ror deles para estas páginas. Com Milla, eternizar não será o mais correcto dos termos pois Noah como cantor ficou quase ao mesmo nível que a princesa Stephanie do Mónaco com o seu Irristible. Mas cantou futebol tal como Milla dançou futebol.
«Hey là, le type-là
Oui oui, petit blanc
Paris-Yaoundé
Connexion mais venez
Allons ambiancer
Ambiance soukouss
Ambiance makossa
Ou l’ambiance du bikutsi
Ambiance assiko
Mouvement partout…».
Para a minha memória fica sempre Roger Milla dançando como um garoto em redor de uma bandeirola de campo. Bendita imagem que o tempo não apaga."
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