sexta-feira, 1 de fevereiro de 2019

ESTÁ NOS LIVROS


"Quando um gatuno torna a decisão de arrobar a porta ou uma janela de uma casa (ou de um sistema informático), não sabe o que vai encontrar lá dentro. Ao avançar, começa por cometer, à sorrelfa, o indiscutível crime de intrusão na propriedade alheia; e se prosseguir a criminosa acção, vasculhará indiscriminadamente tudo o que se lhe deparar, agravando, com a profanação da privacidade alheia, a qualificação dos crimes. A natureza destas gravíssimas violações encontra-se claramente definida nos códigos do direito consagrados em qualquer Estado democrático, além de estarem universalmente preservadas no senso comum das sociedades contemporâneas. De que ciência, poder especial de avaliação, ou de que expresso mandato oficial, poderia, pois, um não especialista em coisa nenhuma estar (ou considerar-se) revestido, para, sozinhos em cena - e sem saber sequer o que iria encontrar no seu dissimulado empreendimento -, intentar actos sequentes do intrusão da propriedade e de vasculhamento da intimidade de terceiros e, ainda, roubar correspondências e documentações privadas, para, ainda por cima, depois, lhes dar publicidade?
O mero senso comum questiona, muito naturalmente, como tais comportamentos - à margem de qualquer demanda ou mandato oficial - poderiam, à partida, ser considerados lícitos, de modo, a justificar, mais tarde, fosse que objectivos fosse.
Tanto mais que, durante a própria circunstância em que pratica o esbulho (e ainda mais, depois dele), o ladrão exerce, ele próprio, um isolado 'julgamento' sem qualquer contradita ou defesa possível, visto que, nessa ocasião, se serve sozinho, alarvemente, a seu prazer exclusivo e sem qualquer oposição possível, numa demoníaca orgia de decisões por si tomadas sem regra, nem limite, diante tudo o que se lhe depara e que a sua demência 'apura' indiscriminadamente.
O bandido, na circunstância da profanação e do esbulho, só actua, sempre, servindo-se de meios ilegítimos e mediante recursos ilegais. De resto, só pode agir se o fizer escondido e dissimulado: ele tem a perfeita consciência do erro, da fraude, do crime, mas sabe que seria arriscado demais actuar sem se disfarçar primeiro. Prepara-se sempre a coberto de vistas alheias, para  não ser apanhado. O gatuno age sempre como um selvagem associal e amoral. Sabe o que é a lei, mas não se detém com ela. Não é um jornalista no exercício de uma pesquisa a que proceda,  de acordo com normas éticas e deontológicas. Não é um investigador munido de qualquer espécie de mandato. Não é um policia. Não é um perito, não é um delegado de qualquer instituto ou sede oficiais.
Despreza as normas que regem o jornalismo, as polícias e o Ministério Público; ri-se das metodologias dos laboratórios científicos e informáticos; não quer saber dos tribunais, nem dos juízes. Afasta-se de quaisquer procedimentos mantidos com base no rigoroso exercício da Justiça dos Homens, que é devidamente fundamentada nas leis dos Estados.  E na ocasião da intrusão e do roubo, enfrenta tudo isto com a mais impura convicção de quem se sente superior à lei e como se a ela fosse imune.
Apesar de toda a dissimulação e ocultação instrumentais do primeiro momento, uma vez consumados os actos, verifica-se, por vezes, um fundo de prosápia e de basófia na actividade de todo o ladrão e impostor que lhe há de ser fatal. Está nos livros.
Na posse do saque indiscriminado, o gatuno lambuza-se com o produto do roubo e começa a definir a sua estratégia para a 'melhor rentabilização' do material. Nalguns casos, decide avançar sozinho para a segunda fase, mas isolado ficará mais frágil. Noutros, escolhe mais ou menos cirurgicamente os receptadores que julga serem mais apetentes, de modo a se forrar de toda a prata que, presumidamente, a malvadez lhe possa garantir.
Em todo o caso, depois desta partilha desvairada, ele e os novos cúmplices irão - inevitavalmente - cometer erros que se revelarão fatais e que, logo desde a consagração da comandita, mais tarde ou mais cedo os hão de levar a deslaçar e a perder o controlo dos acontecimentos. Também está nos livros.
Bem podem fazer chegar 'à causa' deles grandes causídicos nacionais e estrangeiros, pagos a preço de ouro, por fundações, institutos, consórcios internacionais ou empresários de bas-fond da noite de Palermo. Para tentarem branquear a profanação, a violação, a pilhagem e, até mesmo, a traficância e a chantagem, bem podem estes dedicar-se a imponderáveis exercícios de ginástica intelectual e jurídica, nos mais variados campos jurisdicionais públicos e privados; da justiça nacional, comunitária e intercontinental; do direito romano, alemão ou de outras origens; do incomparável direito comparado. Bem podem eles, todos juntos (e também escorados em mais dinheiro sujo, ainda, para pagar a serviçais da pena e da pantalha), tentar montar grandes campanhas de comunicação para justificar o injustificável.
No final das contas, dá de, por fim, fazer-se Justiça.
Está nos livros: o crime não compensa."

José Nuno Martins, in O Benfica

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