Doroteo Guamuch, teve de ser Mateo Flores; Josep Sunyol teve de ser José Suñol. É assim a soberba de Castela!
Os nomes atraem-me como magnetos. Quando o som de um lugar começa a rodar dentro da minha cabeça como se fosse uma canção distante, pego no saco e vou. Uma vez estava na Cidade da Guatemala, aluguei um carro e fui pela estrada de Chimaltenango e Patzún, em direcção a noroeste, San Antonio Palopó e Santa Catarina de Palopó, nas margens do lago de Atitlán. Fui à procura de Panajachel, pode lá haver nome que chame com mais intensidade do que Panajachel, só talvez Ougadougou ou Tirichurappally.
Panajachel desce em ruas de empedrado até à agua escura e tem uma vista larga sobre o vulcão e um mundo hippy que se recusa aceitar a passagem do tempo. E talvez o tempo tenha mesmo parado em Panajachel porque senti uma tranquilidade que costuma andar arredada dos lugares onde as pessoas vivem.
A poucos quilómetro da Cidade da Guatemala, em Mixco, mais precisamente na aldeia de Cotió, nasceu Doroteo Guamuch, um índio quíchua que gostava de correr, de correr muito, por entre as bananeiras que nasciam nos terrenos baldios que separavam as casitas de lata de Colonia Lomas de Portugal, entre a Tercera Calle e o Campo Altapetate. Guamuch corria de casa para o trabalho, logo de madrugada, para uma fábrica de texteis que se encaixava numa esquina entre a Segunda Avenida e a Pimera Calle, e os chefes não deixavam que lhe chamassem Guamuch e obrigavam-no a usar o nome castelhano de Flores. Doroteo gostava de Guamuch, tinha orgulho naquela sonoridade inca da língua que aprendera com a mãe. Sabia dizer de cor «Tukuy kay pachaman paqarimujkuna libres nasekuntu tukuypunitaj kikin obligacionesniycjllataj», a frase inicial da Declaração Universal dos Direitos do Homem, «Todos seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos», mas não sabia quais eram os seus direitos, só conhecia os seus deveres, e um desses deveres era que não se chamasse Guamuch e sim Flores.
Em 1946, Doroteo Guamuch, que para mim será sempre Doroteo Guamuch, foi chamado para representar a Guatemala nos Jogos Centro-Americanos. Inscrevê-lo como Guamuch estava fora de questão para o governo de Juan José Arévalo, por muitas reformas que tivesse prometido. O racismo impôs-se: passou a ser, oficialmente, Mateo Flores.
Guamuch participou nos Jogos Olímpicos de Helsínquia. Tinha 30 anos. Viu Emil Zatopek, a Locomotiva de Praga ganhar a medalha de ouro e ficou-se pelo 22º lugar. Poucos meses depois venceu a Maratona de Boston e tornou-se o maior desportista da história da Guatemala. Quando, em 1955, venceu a maratona dos Jogos Pan-Americanos da Cidade do México, o poder decidiu mudar o nome do Estadio Nacional da Cidade da Guatemala para Estádio Nacional Mateo Flores. Nem uma homenagem respeitava o nome com que nascera.
Porque a opressão me repugna, gosto de ouvir cantar Ramón Pelegero Sanchis:
«Al vent
la cara al vent
el cor al vent
les mans al vent
els ulls al vent
al vent del món».
Ramón nasceu em Valência e compôs Ao Vento do Mundo com apenas 19 anos.
Porque os fascismos me enojam, gosto de saber que essa canção se tornou, nos anos-60, um hino contra o franquismo, cantada por jovens saturados de um poder absurdo que se instalava num cadeirão de uma superioridade que nascia das raízes da raça:
«I tots
tots plens de nit
buscant la llum
buscant la pau
buscant a déu
al vent del món».
Todos, plenos de noite, procurando a luz, procurando a paz... A letra, Ramón escreveu-a em catalão porque o catalão passou a ser o pesadelo do castelhano. Manuel Fraga Iribarne, um canalha galego que foi Ministro da Informação da ditadura militar de Madrid, cuspiu, raivoso como um cão acicatado pelo dono: «No pasa nada porque haya una canción en catalán».Quando alguma coisa se passa, a soberba de Castela ordena: «No pasa nada!» Mesmo que haja gente que morre por exigir ter opinião; mesmo que haja prisioneiros porque não querem escrever de outra forma o nome com que nasceram; mesmo que uma raiva de impotência faça com que muitos queiram pegar fogo ao mundo. «Got Alânia»: a Terra dos Alanos. Catalunha. Josep Sunyol i Garriga teve de se transformar em José Suñol i Garriga. Foi membro da Esquerda Republicana da Catalunha e presidente do Barcelona em 1935.
Em Agosto do ano seguinte viajava de automóvel pela Serra de Guadarrama, tentando entrar em contacto com a frente republicana. Foi apanhado pelos falangistas e fuzilado sem direito a julgamento. Al Vent foi composta mais de vinte anos após o assassinato de Sunyol que, para mim, será sempre Sunyol e não Suñol. Mas Josep, e não José, gostaria certamente de ter ouvido Ramon cantar:
«La vida ens dóna penes
ja el nèixer és un gran plor
la vida pot ser eixe plor
però nosaltres
al vent...»
Em catalão. E ao vento."
Sem comentários:
Enviar um comentário