"Morreu o Rui. Rui Manuel Trindade Jordão. Conheci-o bem, vi-o jogar tantas e tantas vezes, mas não assisti à magia de Londres, contra o Fulham, a meias com Eusébio. Quem viu não acreditou. Não sei como dizer adeus ao Príncipe Negro da minha nostalgia.
Tenho a vida cheia de mortos. É da idade, dirão. Quanto mais velho fico, mais são os que partem.
Restam-me as memórias.
Tenho tantas memórias, que já nem sei o que fazer com elas. Algumas escrevo.
Escrevi nestas páginas sobre tantos mortos: Eusébio, Coluna, Artur, Bento, Vítor Baptista...
Na semana passada, disse-vos que ia escrever mais um artigo sobre o Eusébio, a propósito dos jogos da selecção.
Mas morreu o Rui: Rui Manuel Trindade Jordão.
Lembro-me de quando chegou ao Benfica, em 1971. Era um miúdo. E eu mais miúdo ainda. Falavam-se maravilhas de Jordão, a Gazela de Benguela.
Para mim foi o Príncipe Negro.
Passaram-se anos, e conheci-o. Fiz-lhe entrevistas, conversámos, chegámos a jogar futebol juntos, jogos de brincadeira, claro está.
Era um tipo calado, mas tão cheio por dentro. Havia nele a arte que depois pintou. Já havia nele a arte, quando jogava.
O Benfica dos golos atrás de golos: Eusébio e Simões, e Artur Jorge, Jordão, Nené e Vítor Baptista. Cabiam todos num onze. Jimmy Hagan encaixava-os, e eles varriam os campeonatos a golos.
Uma vez, em 1996, estava eu em Inglaterra a cobrir o Campeonato da Europa, conheci um velhote num pub. Foi em Coventry. Soube que eu era português.
Falou-me de uma noite, em Craven Cottage, campo do Fulham. Os olhos brilhavam-lhe de emoção. 'Wow! What I saw!', exclamou. Começou a descrever. No meio do campo, o Benfica com a bola. De repente, alguém a mete na cabeça de Eusébio. Este para Jordão, que a devolve, também de cabeça. E Eusébio para Jordão, e Jordão para Eusébio. Cinco, seis, sete vezes, sempre a correrem, um e outro lado. O público de pé, maravilhado, sem acreditar no que os seus olhos viram.
Verdade? Lenda?
Procurei nos jornais. Sim. Muitos falam desse momento.
Eusébio e Jordão trocando bolas de cabeça por entre a equipa do Fulham.
Eram mesmo assim, os sonhos: jogadores de sonho feitos realidade.
Depois Eusébio cansou-se, deixou que a bola viesse da cabeça de Jordão para o seu pé direito e chutou. Indefensável!
Nunca disse adeus
Tenho a vida cheia de mortos e não vou a funerais.
Faço a vida cheia de mortos e não vou a funerais.
Faço como Vinicius: 'Os funerais tirei-os da minha vida. Prefiro recordar vivos os meus mortos...'
Prefiro recordar vivo Rui Jordão, embora há tanto tempo não o visse.
Detestava eventos. Detestava conversa para deitar fora. O futebol perdera o encanto, para ele que encantou. Agora encantou-se, como dizia Guimarães Rosa.
Atleta autêntico, vi-o sofrer muito.
Pernas partidas. Uma vez pelo Alberto, que chorou no fim, outra pelo José Eduardo.
Fino, elegante.
Tinha fintas desconcertantes, em velocidade, um pontapé tremendo com o esquerdo. Mas, ao mesmo tempo, uma espécie de suavidade.
Esteve no Benfica e partiu para Saragoça. 9000 contos, falou-se.
Regressou, e o Benfica não o quis, falou-se.
Foi para o Sporting. Certa vez, em Alvalade, vi-o marcar um golo frente ao FC Porto com um toque de calcanhar de fora da grande área: a bola sobrevoando o guarda-redes infeliz, em eclipse perfeita, irretocável. Que coisa linda, Rui!
Outra vez, na Luz, desfez o Feyenoord a meias com o Nené.
E, também na Luz, marcou o penálti ao Dassaev que levou Portugal ao Europeu de 1984.
E aquilo que ele e o Chalana fizeram em Marselha, à França? Francamente! É preciso um descaramento divino!
Descaramento de Divino Negro, que Jordão foi um deles.
Tinha tantos episódios para contar e, agora, calou-se. Ele que sempre foi calado, ensimesmado, tímido. Mas de uma educação, de um cavalheirismo...
Volto ao pub de Coventry. Ao velhote de olhos arregalados, com um brilho de duende de Lorca.
A bola no alto.
Jordão toca de cabeça para Eusébio, e este devolve de cabeça para Jordão. Até aí tudo normal. Mas depois o gesto repete-se. Uma e outra e outra vez. Eusébio e Jordão vão devolvendo o adversário com toques de cabeça sucessivas, percorrendo assim o espaço até à grande área. Basta! A bola sai da cabeça de Jordão para o pé direito de Eusébio. Sublime!
Parece que consigo assistir a tudo, em slow motion.
Vocês não?
Dois gatos negros num campo de lama.
O público inglês levanta-se de supetão.
Era exactamente para isto que tinha saído de casa.
Os aplausos não param.
Uma obra de arte assim nunca se vira desde que o Fulham fora fundado, em 1879. Eram trinta mil almas em redor de um relvado na margem esquerda do Tamisa.
'No modesto campo do Fulham assistiu-se ontem à colocação de um jogador português na rampa de lançamento para o estrelato internacional', escrevia Joaquim Letria. 'Esse jogador é Jordão! O jovem africano esteve em todas. Foi dele que partiu o primeiro golo, e o total mérito do segundo golo benfiquista fica a dever-se a ele e a Eusébio (...) Um verdadeiro golo de antologia que durante muito tempo perdurará na memória de quantos assistiram ao desafio'.
Perguntem ao Joaquim Letria. Ele estava lá. Eu não.
Vi tantas e tantas e tantas vezes jogar o Jordão, mas essa não.
Jordão continuou por muitos anos a ser Jordão, e o Estádio da Luz pôde vê-lo na plenitude da sua juventude e aplaudir o seu estilo desconcertante. Depois partiu.
Rapaz discreto, homem tranquilo.
Um príncipe.
Tenho a vida tão cheia de mortos: dispensavam mais um.
A última vez que estive com o Jordão ele parecia um fantasma, desvanecendo-se aos poucos.
Conseguia estar em todo o lado como se não estivesse.
Já em campo era assim: não estava e aparecia, de repente, e uma luz brilhava de paixão incontida.
Vejo-o sair pela porta clara dos que vivem para sempre. Encantados, não mortos.
Vejo que não olha para trás, o futebol ficou na relva, não nas palavras. Ele tinha jeito com as palavras, mas não as gastava. Devia dar-lhes um valor grande.
Quero acenar-lhe, mesmo à distância, alguns derradeiro.
Mas, agora que penso nisso, nunca o vi dizer adeus. Ia-se embora e nada mais.
Como agora, na frieza de um hospital, traído pelo coração.
Vai ficando cada vez mais longe, como uma sombra.
O Príncipe Negro da minha nostalgia..."
Afonso de Melo, in O Benfica
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